É O PRÍNCIPE PERDIDO! É IVOR!
1915
Muitas vezes desde o início da viagem os corações dos meninos bateram com a vibração e a excitação das coisas. A história da qual suas vidas fazia parte era uma experiência cheia de emoções. Mas enquanto cuidadosamente percorriam seu caminho descendo os degraus íngremes aparentemente para as profundezas da terra, tanto Marco quanto O Rato sentiram que o velho pastor devia ouvir cada batida de seus jovens corações. ― Os Forjadores da Espada. Não se esqueça de nenhuma palavra que eles disserem, ― O Rato cochichou ― para você poder me contar depois. Não esqueça nada! Ah… Se eu soubesse samaviano…
No fim dos degraus estava um homem que era evidentemente a sentinela que havia movido a rocha usando a alavanca. Ele era um grande e robusto camponês com uma face vigilante e gentil, e o pastor o cumprimentou ao pegar dele a lanterna que estava oferecendo.
Eles passaram por uma passagem estreita e escura, desceram mais alguns degraus e viraram uma esquina para um outro corredor cortado na rocha e na terra. Era um corredor mais largo, mas ainda escuro, tão escuro que Marco e O Rato tinham andado alguns metros antes de seus olhos se acostumarem suficientemente à luz opaca para ver que as próprias paredes pareciam feitas de armas empilhadas.
― Os Forjadores da Espada! ― O Rato estava inconscientemente murmurando para si ― Os Forjadores da Espada!
Devia ter levado anos para cortar a passagem redonda na qual caminhavam, e ainda mais anos para forjar as paredes sólidas e ásperas. Mas O Rato se lembrou da história que um estrangeiro contara a seu pai, dos poucos cuidadores de rebanhos que, em sua grande tristeza e fúria pela perda de seu príncipe, se reuniram com um juramento solene que fora passado de geração a geração. Os samavianos eram um povo de memória longa, e o fato de que sua paixão deveria ser extinguida a fizera queimar ainda mais ferozmente. Quinhentos anos atrás eles fizeram seu juramento pela primeira vez; e os reis vieram e se foram, morreram ou foram assassinados, e as dinastias mudavam, mas os Forjadores da Espada não mudaram nem esqueceram seu juramento nem vacilaram em sua crença de que algum dia – algum dia, mesmo após os longos anos escuros – seu Príncipe Perdido estaria entre eles novamente, e de que eles se submeteriam ansiosamente a seu governo legítimo. E nos últimos cem anos seu número e sua força nos esconderijos aumentara tanto que Samávia estava finalmente repleta deles. E somente esperavam, ansiosos: pelo Acendimento da Lâmpada. O velho pastor sabia quão ansiosamente, e sabia o que estava trazendo a eles. Marco e O Rato, apesar de suas imaginações extremas de meninos, não tinham idade suficiente para saber quão feroz e cheia de avidez flamejante a espera ansiosa de homens camponeses crescidos podia ser. Mas havia uma vibração tensa em saber que eles, que estavam sendo levados aos Forjadores, eram os Portadores do Sinal. O Rato ficou quente e frio; ele roía suas unhas enquanto seguiam. Poderia quase ter gritado alto, pela intensidade de sua excitação, quando o velho pastor parou na frente de uma porta escura! Marco não fez som algum. Perigo ou emoção sempre o fizeram parecer alto e pálido. Ele parecia os dois nesse momento.
O pastor tocou na porta, e ela se abriu.
Eles olharam para uma caverna imensa. Suas paredes e seu teto estavam forrados com armas – espingardas, espadas, baionetas, lanças, punhais, pistolas, todas as armas que um homem desesperado usaria. O lugar estava cheio de homens, que se viraram para a porta quando ela se abriu. Todos cumprimentaram o pastor, mas Marco percebeu quase no mesmo instante que ficaram surpresos por ele não estar sozinho.
Eles formavam um bando estranho e variado em seu abrigo de armas à luz brilhante de tochas. Marco viu imediatamente que eram homens de todas as classes, embora todos estivessem vestidos do mesmo modo rústico. Eram grandes montanheses, e habitantes de planícies jovens e maduros em anos. Alguns dos maiores eram homens com cabelos brancos mas feições fortes, e com determinação em suas fortes frontes. Havia muitos desses, Marco viu, e nos olhos de cada homem, fosse jovem ou velho, ardia uma chama firme indomável. Eles foram espancados tantas vezes, foram oprimidos e roubados, mas nos olhos de cada um estava essa chama indomável que, através de toda a longa tragédia dos anos, fora passada de pai para filho. Isso era o que se seguira através dos séculos, mantendo o juramento e forjando suas espadas nas cavernas da terra, e que até esse dia estava… esperando.
O velho pastor colocou sua mão no ombro de Marco, e gentilmente o empurrou para sua frente diante da multidão, que se dividiu para abrir caminho. Ele não parou até que os dois estivessem no centro do círculo, que se afastava com o olhar fixo e curioso. Marco olhou para o velho homem porque por algum tempo ele não falou nada. Era evidente que ele não falou porque também estava muito entusiasmado, e não poderia falar. Ele abriu seus lábios mas sua voz não saiu. Então tentou novamente e falou de modo que todos pudessem ouvir, até mesmo os homens que estavam na parte de trás do círculo formado pelos que observavam atentamente.
― Companheiros patriotas, ― ele disse ― esse é o filho de Stefan Loristan, e vem portando o Sinal. Meu filho, ― ele disse para Marco ― fale!
Então Marco entendeu o que ele queria, e também o que ele sentia. Ele também sentiu, aquela alegria exaltante e magnífica, enquanto falava, segurando sua cabeça escura altamente e levantando sua mão direita.
― A Lâmpada está Acesa, irmãos! ― ele exclamou. ― A Lâmpada está Acesa!
Então O Rato, que estava ao lado, assistindo, pensou que o estranho mundo dentro da caverna tinha ficado louco! Brados abafados e extravagantes irromperam, homens se agarraram uns aos outros em abraços veementes, caíram de joelhos, seguraram-se uns aos outros com lágrimas nos olhos, apertaram as mãos do seu próximo e pularam para o ar. Era como se não pudessem suportar a alegria de ouvir que o fim de sua espera finalmente chegara. Eles correram para cima de Marco, e caíram aos seus pés. O Rato viu grandes camponeses beijando seus sapatos, suas mãos, cada pedaço de sua roupa que podiam pegar. O círculo frenético inclinava-se e fechava-se em cima de Marco até que O Rato ficou assustado. Ele não sabia que, dominado por esse frenesi de emoção, seu próprio entusiasmo estava fazendo-o tremer da cabeça aos pés como uma folha, e que lágrimas estavam escorrendo por suas bochechas. A multidão em movimento escondeu Marco, e ele começou a lutar para abrir caminho na direção dele porque seu entusiasmo aumentara juntamente com medo. A multidão êxtase-frenética de homens parecia neste momento quase ter perdido seu próprio juízo. Marco era apenas um menino. Eles não estavam cientes de quão ferozmente estavam se pressionando contra ele e afastando o próprio ar.
― Não matem ele! Não matem ele! ― gritou O Rato, se esforçando para frente. ― Saiam da minha frente! Eu sou o ajudante-de-campo dele! Me deixe passar! ― E embora ninguém entendesse seu inglês, um ou dois de repente lembraram de que o tinham visto entrar com o pastor e então deram espaço para ele. Mas foi justo neste momento que o velho pastor levantou sua mão acima da multidão e falou numa voz firme de comando.
― Para trás, meus irmãos! ― ele bradou. ― Loucura não é o respeito que você deve trazer ao filho de Stefan Loristan. Comportem-se! ― Sua voz teve um poder que penetrou até mesmo nos pastores mais inspirados. A massa frenética moveu-se para trás e deixou espaço ao redor de Marco, cujo rosto O Rato conseguiu finalmente ver. Estava branco com emoção e seus olhos estavam com um olhar como de admiração. O Rato se forçou para frente até que ficou ao lado dele. Ele não estava ciente de que estava quase chorando ao falar.
― Sou seu ajudante-de-campo ― ele disse. ― Vou ficar em pé bem aqui! Seu pai me enviou! Estou sob ordens! Pensei que eles iriam esmagar você até a morte. ― Ele encarou o círculo envolta deles como se fossem inimigos ao invés de veneráveis seguidores.
O velho pastor, vendo como estava, tocou o braço de Marco. ― Diga para ele que não precisa temer ― o pastor disse. ― Foi só pelos primeiros momentos. A paixão nas suas almas os deixou frenéticos. Eles são seus servos.
― Os que estavam atrás poderiam ter empurrado os que estavam na frente até que pisassem em cima de você apesar de si mesmos! ― O Rato insistiu.
― Não ― disse Marco. ― Eles teriam parado se eu tivesse falado.
― Então por que você não falou para eles pararem? ― perguntou O Rato bruscamente.
― Tudo que eles sentiram foi para Samávia e para meu pai ― Marco disse ― e para o Sinal. Eu também me senti como eles.
O Rato começou a se acalmar um pouco. Afinal de contas, era verdade. Como que ele poderia ter tentado suprimir as explosões de respeito que tinham por Loristan – pelo país que estava libertando para eles – pelo Sinal que os chamou à liberdade? Ele não poderia.
Em seguida começou uma cerimônia política, estranha e rústica. O pastor foi andando entre a multidão ao seu redor e conversou com os homens um após o outro – as vezes com um grupo de homens. Um círculo maior foi se formando. Enquanto o homem velho com a face pálida se movia de um lado para outro, O Rato sentiu como se algum tipo de coroação fosse acontecer. Observando desde o começo, ele estava muito entusiasmado.
Na parede no fundo da caverna havia uma enorme pintura coberta por uma cortina. Do teto pendurava-se uma lâmpada antiga de metal suspendida por correntes. O pastor pediu para Marco ficar debaixo dela com seu ajudante-de-campo perto em serviço. Um grupo formado pelos maiores pastores saiu e depois retornou: cada um carregando uma enorme espada que talvez fossem as primeiras a serem feitas nos dias escuros do passado. Os portadores dessas espadas formaram-se numa linha dos dois lados de Marco. Eles levantaram suas espadas e formaram um arco pontudo acima da sua cabeça e uma passagem de doze homens de comprimento. Quando as pontas se encontraram com um som metálico acima de suas cabeças, O Rato sentiu que seu próprio coração deixou de dar uma batida. Sua alegria estava muito grande para poder resistir. Ele fixou seus olhos em Marco, que estava em pé daquela maneira curiosa e esplêndida que tanto ele como o seu pai CONSEGUIAM ficar, e ficou imaginado como ele conseguia ficar assim. Parecia que estava preparado para qualquer coisa estranha que poderia acontecer para ele, porque estava “sob ordens”. O Rato sabia que ele estava fazendo o que quer que fosse simplesmente por causa do seu pai. Era como se ele sentisse que estava representando seu pai, embora fosse meramente um menino; e por causa disto, menino como era, devia carregar-se nobremente e permanecer externamente tranquilo.
O pastor moveu-se para o lado de Marco, e trouxe-o para perto da pintura velada. Inclinando-se para frente, pegou uma corda que pendurava da pintura velada. Ele a puxou e a cortina caiu. Diante deles apareceu olhando-os uma pintura de um jovem alto com a aparência de um rei e olhos profundos em que estrelas brilhavam radiantemente com um sorriso maravilhoso de se ver. Em volta de suas cabeleiras pretas e grossas o pintor, que havia falecido há muito tempo atrás, havia posto uma coroa dourada.
― Filho de Stefan Loristan ― o idoso pastor disse numa voz trêmula, ― o Príncipe Perdido! É Ivor!
― Ivor! Ivor! ― as vozes interromperam em um grande murmúrio. ― Ivor! Ivor!
Marco cambaleou para frente com seus olhos fixos na pintura, sua respiração presa na garganta, e de boca aberta. ― Mas…mas… ― ele gaguejou, ― mas se meu pai fosse tão jovem quanto ele é… ele seria COMO ele!
― Quando você for da idade dele, VOCÊ será como ele… VOCÊ! ― disse o pastor. E deixou a cortina descer inteiramente.
O Rato ficou com olhos arregalados olhando para Marco e depois para a pintura e da pintura para Marco. E respirou mais e mais rápido e roeu as pontas de suas unhas. Mas não disse uma palavra. Ele não conseguiria se tentasse.
Então Marco andou para longe da pintura como se estivesse num sonho, e o homem idoso o seguiu. Ele e o menino passaram por baixo da arcada de espadas juntos. Agora os olhos de todos os homens estavam fixos em Marco. Marco parou na porta pesada pela qual tinha entrado e virou para olhar os homens. Ele estava com uma aparência jovem, magro e pálido, mas de repente o sorriso de seu pai se acendeu no seu rosto. Ele disse algumas palavras em Samaviano clara e gravemente, fez continência e saiu.
― O que você disse para eles? ― ofegou O Rato, tropeçando atrás dele enquanto a porta se fechava atrás deles e tampava o murmúrio de sons apaixonados.
― Havia somente uma coisa a dizer ― foi a resposta. ― Eles são homens; eu sou somente um menino. Eu agradeci eles por meu pai e disse a eles que ele nunca… nunca irá esquecer.