"EXTRA! EXTRA! EXTRA!"

1915

Estava chovendo em Londres, aliás, estava caindo um temporal. Já chovia por duas semanas, às vezes mais forte e às vezes apenas um chuvisco, mas geralmente mais forte. Quando o trem vindo de Dover entrou na estação Charing Cross, o tempo pareceu repentinamente considerar que até agora fora muito suave e deveria se expressar de forma muito mais vigorosa. Então juntou todos os seus recursos e despejou-os num dilúvio que surpreendeu até mesmo os londrinos.

A chuva batia e escorria tão forte nas janelas do vagão de terceira classe que Marco e O Rato estavam, que não podiam ver através delas.

Eles fizeram sua viagem de volta para casa muito mais rapidamente do que a viagem de ida. Obviamente eles levaram algum tempo para caminhar de volta para a fronteira, mas não houvera razão para parar em lugar algum depois de terem alcançado a ferrovia. Eles ficaram cansados algumas vezes, mas dormiram pesadamente nos assentos de madeira do vagão. O único desejo deles era chegar em casa. A casa em Philibert Place nº 7 erguia-se diante deles em sua ruidosa esqualidez como o lugar mais desejado na terra. Para Marco, lá estava seu pai. E foi somente Loristan que O Rato viu quando pensou nela e o olhar que Loristan teria quando o visse entrar no quarto com Marco e ficar em pé, fazer continência e dizer: “Eu trouxe ele de volta, senhor. Ele tem seguido cada ordem que você deu a ele, cada uma. E eu também.” E era verdade. Ele fora enviado como seu companheiro e servo, e fora fiel em cada pensamento. Se Marco tivesse permitido, ele o teria servido como um servo, e ficaria orgulhoso do serviço. Mas Marco nunca o deixaria esquecer de que eram somente dois meninos e que um não era mais importante que o outro. Ele tinha secretamente até mesmo sentido que essa atitude seria um tipo de injustiça. Teria sido mais como um jogo se um dos dois fosse o mero criado do outro, e se esse outro bazofiasse um pouco, e desse comandos, e exigisse sacrifícios. Se o vassalo fiel pudesse ser ferido ou lançado num calabouço por causa de seu jovem comandante, a aventura estaria mais completa.

Mas embora sua jornada tivesse sido cheia de maravilhas e rica em belezas, embora a memória dela estivesse na mente do Rato como o plano de fundo de uma tapeçaria bordada com todos os matizes da terra e com todo o seu esplendor, não houve nenhum calabouço e nem ferimentos. Depois da aventura em Munique a criancice sem importância deles não fora nem mesmo observada por tais perigos que poderiam tê-los ameaçado. Como disse O Rato, eles “foram soprados como grãos de pó” pela Europa e não foram nem percebidos. E isso fora o que Loristan planejara, isso era o que seu profundo pensamento tinha elaborado. Se fossem homens, não estariam tão seguros.

Desde quando deixaram o velho pastor no monte para começar a viagem de volta à fronteira, os dois permaneciam em longos silêncios enquanto andavam lado a lado ou se deitavam no musgo nas florestas. Agora que seu trabalho estava feito, um tipo de reação se iniciara. Não havia mais planos para serem feitos e nem incertezas para considerar. Estavam em seu caminho de volta para Philibert Place nº 7: Marco para seu pai, O Rato para o homem que respeitava. Os dois estavam pensando em muitas coisas. Marco estava preenchido com o anseio de ver a face de seu pai e ouvir sua voz novamente. Ele queria sentir a pressão da mão dele em seu ombro e ter certeza de que ele era real e não um sonho. Isso era porque, durante sua viagem para casa, tudo o que acontecera muitas vezes parecia ser um sonho. Tudo fora tão maravilhoso: o alpinista em pé olhando para eles na manhã que acordaram no Gaisberg; o sapateiro montanhês medindo seu pé na pequena loja; a senhora muito idosa e seu nobre; o Príncipe com sua face virada para cima enquanto estava na sacada olhando para a lua; o velho pastor chorando de alegria; a grande caverna com a luz amarela sobre a multidão de faces ardentes; a cortina que se abriu e mostrou os olhos calmos e o cabelo escuro com a coroa! Agora que foram deixados para trás, todos pareciam como coisas que ele tinha sonhado. Mas não tinha; ele estava voltando e contaria a seu pai sobre elas. E como seria BOM sentir a mão dele em seu ombro!

O Rato roía muito as unhas. Seus pensamentos eram mais bravios e febris que os de Marco. Eles lançavam-se para frente apesar de si mesmo. Não adiantava se levantar e falar para si que era um tolo. Agora que estava tudo acabado, ele tinha o tempo de ser tão grandemente tolo quanto era inclinado a ser. Mas como ansiava chegar a Londres e ficar face a face com Loristan! O sinal estava dado. A Lâmpada estava acesa. O que aconteceria depois? Suas muletas estavam debaixo de seus braços antes de o trem parar.

― Chegamos! Chegamos! ― ele gritou impaciente para Marco. Eles não tinham bagagem para atrasá-los. Pegaram suas sacolas e seguiram a multidão ao longo da plataforma. A chuva estava batendo como granizo contra o alto teto de vidro. As pessoas, vendo o brilho de ansiedade exultante em sua face, se viravam para olhar para Marco. Quando chegaram à entrada, a chuva estava dançando nos pavimentos.

― Um taxi não vai custar muito, ― Marco disse ― e vai nos levar rápido.

Eles chamaram um e entraram. Os dois tinham as bochechas vermelhas, e os olhos de Marco pareciam que olhavam fixamente para algo muito longe – fitando-o, e pensando.

― Estamos de volta! ― disse O Rato, numa voz trêmula. ― Estivemos… e estamos de volta! ― Então de repente virou-se para Marco e disse: ― Não parece para você como se, talvez, não… não fosse verdade?

― Sim, ― Marco respondeu ― mas foi verdadeiro. E está feito. ― Depois adicionou após um momento de silêncio, exatamente o que O Rato dissera para si: ― O que virá depois? ― Ele disse em voz muito baixa.

Não era muito longe até Philibert Place. Quando eles viraram na rua barulhenta e desordenada, onde ônibus, carretões e carroças passavam uns pelos outros com suas cargas, e as pessoas de faces cansadas se apressavam em multidões ao longo do pavimento, eles olharam tudo isso sentindo que tinham realmente deixado seu sonho bem para trás. Mas estavam em casa.

Foi bom ver Lázaro abrir a porta e esperar antes que eles saíssem do taxi. Taxis paravam tão raramente na frente das casas em Philibert Place que era sempre esperado que os próprios passageiros abrissem a porta. Quando Lázaro viu esse parar à frente do portão quebrado de ferro, soube quem trazia. Ele mantivera um olho nas janelas fielmente por muitos dias, mesmo quando sabia que era cedo demais, mesmo que tudo ocorresse bem, para qualquer viajante retornar.

Ele se manteve com um ar mais militar do que o normal e sua continência quando Marco passou pela soleira foi uma magnificência formal. Mas sua saudação irrompeu de seu coração.

― Deus seja louvado! ― ele disse em seu profundo rugido de alegria. ― Deus seja louvado! ― Quando Marco colocou sua mão para frente, ele inclinou sua cabeça grisalha e a beijou devotamente.― Deus seja louvado! ― ele disse novamente.

― Meu pai? ― Marco começou ― Meu pai está fora? ― Se estivesse na casa, Marco sabia que ele não teria ficado na sala dos fundos.

― Senhor, ― disse Lázaro ― você pode vir comigo até o quarto dele? Você também, senhor ― disse para O Rato. Ele nunca dissera “senhor” para ele antes.

Ele abriu a porta do quarto familiar, e os meninos entraram. Não havia ninguém no quarto.

Marco nada falou; nem O Rato. Os dois ficaram imóveis no meio do tapete gasto e olharam para o velho soldado. Ambos tiveram o mesmo sentimento repentino de que a terra tinha saído de debaixo de seus pés. Lázaro viu isso e falou rapidamente e com tremor. Estava quase tão agitado quanto eles.

― Ele me deixou ao seu serviço, a seus comandos ― ele começou.

― Deixou você? ― disse Marco.

― Deixou nós, nós três, sob ordens: para ESPERAR ― disse Lázaro. ― O Mestre partiu.

O Rato sentiu algo quente vir aos seus olhos. Ele limpou para que pudesse olhar para o rosto de Marco. O choque o mudara muito. O brilho da alegria ansiosa tinha se apagado, tinha se tornado mais pálida e suas sobrancelhas estavam contraídas juntas. Por um momento ele não falou nada, e, quando falou, O Rato sabia que sua voz estava firme somente porque ele queria que estivesse.

― Se ele se foi, ― ele disse ― é porque teve um motivo importante. Foi porque ele também estava sob ordens.

― Ele disse que você saberia disso ― Lázaro respondeu. ― Ele foi chamado em tal pressa que não teve tempo para fazer nada mais que escrever algumas palavras. Deixou-as para você em sua escrivaninha ali.

Marco andou até a escrivaninha e abriu o envelope que estava lá. Dentro dele havia apenas algumas linhas escritas numa folha de papel, que foram evidentemente escritas na maior pressa. Era isso: ― A Vida da minha vida: para Samávia.

― Ele foi chamado: para Samávia ― Marco disse, e esse pensamento fez seu sangue correr com ímpeto por suas veias. ― Ele foi para Samávia!

Lázaro passou sua mão asperamente pelos olhos e sua voz tremeu e pareceu rouca.

― Tem havido muita deslealdade nos campos dos Maranovitch ― ele disse. ― O restante do exército tem ficado louco. Senhor, silêncio ainda é a ordem, mas quem sabe, quem sabe? Somente Deus.

Ele não tinha terminado de falar antes de virar sua cabeça como se ouvisse sons na rua. Eram o tipo de sons que dispersara O Pelotão, e o mandara correndo pela passagem até a rua para conseguir um jornal. Podia-se ouvir uma agitação de meninos jornaleiros gritando tumultuosamente alguma parte surpreendente de notícia que havia se tornado um “Extra”.

O Rato ouviu primeiro e lançou-se para a porta da frente. Ao abri-la um jornaleiro correndo gritou com a maior força de seus pulmões as notícias que tinha para vender: ― Assassinato do Rei Michael Maranovitch por seus próprios soldados! Assassinato dos Maranovitch! Extra! Extra! Extra!

Quando O Rato retornou com um jornal, Lázaro colocou-se entre ele e Marco com grande e respeitosa cerimônia. ― Senhor, ― ele disse para Marco ― estou sob seus comandos, mas o Mestre me deixou uma ordem para eu repetir para você. Ele pediu para que você NÃO lesse os jornais até que ele próprio possa vê-lo novamente.

Ambos os meninos recuaram. ― Não ler os jornais! ― exclamaram juntos.

Lázaro nunca fora tão reverente e cerimonioso. ― Com seu perdão, senhor ― ele disse. ― Eu posso ler sob suas ordens, e relatar somente as coisas que seriam bom para você saber. Já foram contadas histórias perversas, e poderão vir outras piores. Ele pediu que você mesmo não lesse. Se vocês se encontrarem novamente… quando vocês se encontrarem novamente ― ele se corrigiu apressadamente ― quando vocês se encontrarem, ele disse que você entenderá. Sou seu servo. Vou ler e responder todas as perguntas que puder. O Rato entregou a ele o jornal e eles retornaram para a sala dos fundos juntos.

― Você deve nos dizer o que ele desejaria que ouvíssemos ― Marco disse.

As notícias foram logo contadas. A história não era longa e os detalhes exatos ainda não tinham chegado a Londres. Era resumidamente que o líder do partido Maranovitch fora morto por soldados enfurecidos de seu próprio exército. Era um exército retirado principalmente da classe camponesa, que não amava seus líderes, nem desejava lutar, e que, sofrendo tratamento brutal, tinha finalmente sido incitado a uma revolta furiosa.

― E agora? ― perguntou Marco.

― Se eu fosse um samaviano… ― começou O Rato e então parou. Lázaro mordia os lábios, mas com o olhar fixo como uma pedra no tapete. Não somente O Rato, mas também Marco notou uma rígida mudança nele. Era rígida porque sugeria que ele estava se contendo sob um controle de ferro. Era como se enquanto torturado por ansiedade ele tivesse jurado não se permitir parecer ansioso, e a decisão fixara sua mandíbula fortemente e talhara novas linhas em sua face enrugada. Os dois meninos pensaram isso em silêncio, mas nenhum desejou colocar isso em palavras. Se ele estivesse ansioso, poderia ser somente por uma razão, e os dois perceberam qual deveria ser a razão. Loristan fora para Samávia: para o país rasgado e em sangue cheio de desordem e perigo. Se tinha ido, poderia somente ser porque seu perigo o chamara e ele fora para encará-lo no pior. Lázaro fora deixado para cuidar deles. Silêncio ainda era a ordem, e o que ele sabia não podia contar a eles, e talvez não soubesse muito mais do que simplesmente que uma grande vida poderia ser perdida.

Por seu mestre estar ausente, o velho soldado parecia sentir que deveria se consolar com uma reverência cerimonial maior do que já mostrara antes. Ele ficava esperando para ser chamado, às ordens de Marco, como sempre fora seu costume fazer com Loristan. O serviço cerimonioso se estendeu até mesmo ao Rato, que parecia ter tomado um novo lugar em sua mente. Ele agora também parecia ser uma pessoa a ser servida e respondida com dignidade e respeito formal.

Quando a refeição da noite foi servida, Lázaro puxou a cadeira de Loristan à cabeceira da mesa e ficou atrás dela com ar majestoso. ― Senhor, ― ele disse para Marco, ― o Mestre pediu para que você tomasse o assento dele até… enquanto ele não está com você. ― Marco tomou o assento em silêncio.

Às duas horas da manhã, quando a rua barulhenta estava quieta, a luz da lâmpada da rua, brilhando no pequeno quarto, caía nas faces pálidas de dois meninos. O Rato se sentou em sua cama-sofá do modo costumeiro, abraçando os joelhos. Marco estava deitado em seu travesseiro duro. Nem um dos dois dormira e mesmo assim não conversaram muito. Cada um estivera secretamente tentando muito adivinhar sobre por que o outro não falava.

― Há uma coisa que precisamos lembrar ― Marco dissera, mais cedo naquela noite. ― Não devemos ter medo.

― Não, ― respondeu O Rato, quase ferozmente, ― não devemos ter medo.

― Estamos cansados; viemos esperando poder contar tudo para ele. Sempre esperamos por isso. Nem uma vez pensamos que ele poderia ter partido. E ele PARTIU. Você sentiu como se… ― ele se virou para o sofá ― como se algo tivesse golpeado você no peito?

― Sim ― O Rato respondeu pesadamente. ― Sim.

― Não estávamos prontos ― disse Marco. ― Ele nunca tinha saído antes; mas deveríamos ter lembrado de que algum dia ele poderia ser… chamado. Ele partiu porque foi chamado. Disse para esperarmos. Não sabemos o que estamos esperando, mas sabemos que não devemos ter medo. Permitir a nós mesmos ficar com MEDO seria desobedecer ele.

― Claro! ― gemeu O Rato, deixando sua cabeça cair nas mãos. ― Não tinha pensado nisso.

― Vamos lembrar das palavras dele ― disse Marco. ― Essa é a hora: “Não odeiem. Nem tenham MEDO!”

O Rato levantou sua cabeça, e olhou para a cama de lado.

― Você acha ― ele disse vagarosamente ― você JÁ pensou que talvez ELE soubesse onde o descendente do Príncipe Perdido estava?

Marco respondeu ainda mais devagar. ― Se existia alguém que sabia… certamente ele seria a pessoa. Ele sabe muitas coisas ― ele disse.

― Então ouça isso! ― irrompeu O Rato. ― Acredito que ele foi para CONTAR para as pessoas. Se ele fizer isso – se puder mostrar para eles – o país inteiro ficaria louco de alegria. Não seria somente o Partido Secreto. Toda a Samávia se levantaria e seguiria qualquer bandeira que ele escolhesse levantar. Eles têm orado pelo Príncipe Perdido por quinhentos anos, e se acreditassem que ele está no meio deles mais uma vez, lutariam como loucos por ele. Mas não haveria com quem lutar. TODOS irão querer a mesma coisa! Se pudessem ver o homem com o sangue de Ivor em suas veias, sentiriam que ele voltou para eles – voltou dos mortos. Eles acreditariam nisso!

Ele bateu seus punhos um no outro em sua animação frenética. ― É a hora! É a hora! ― ele exclamou. ― Nenhum homem poderia perder essa chance! Ele DEVE contar para eles – ele DEVE. Esse DEVE ser o motivo de ele ter ido. Ele sabe – ele sabe – ele sempre soube! ― e se jogou de volta ao sofá lançando os braços para cobrir a face, e ficou deitado respirando rapidamente.

― Se for a hora, ― disse Marco numa voz baixa e forçada ― se for a hora, e ele souber – vai contar a eles. E lançou os braços à própria face e se deitou imóvel.

Nenhum dos dois disse outra palavra, e a lâmpada da rua brilhou neles como se estivesse esperando que algo acontecesse. Mas nada aconteceu. Em algum tempo adormeceram.

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