O JOGO ESTÁ NO FIM

1915

Sempre que a história da Europa for escrita e contada, o incomparável acontecimento da Ascensão do Partido Secreto em Samávia irá se sobressair como um de seus registros mais surpreendentes e empolgantes. Cada detalhe associado ao episódio surpreendente, do começo ao fim, foi empolgante mesmo quando vinha de puros fatos realistas. Quando ela é contada, sempre começa com a história do jovem samaviano alto e majestoso que saiu do palácio cedo, aos primeiros raios de sol da manhã, cantando uma canção dos pastores sobre os dias passados. Então vem a explosão da população arruinada e revoltada; depois a lenda da manhã na montanha, e o velho pastor saindo de sua caverna e encontrando o corpo aparentemente morto do jovem e forte caçador. Seguida do período em que recebeu cuidados secretamente na caverna; depois a carroça balançando cheia de peles de ovelha atravessando a fronteira. E então a amargura da raiva e das lutas das dinastias, e o punhado de pastores e cuidadores de rebanhos se reunindo em sua caverna e juntando a si mesmos e seus futuros filhos e filhos dos seus filhos por um juramento que nunca seria quebrado. Depois a passagem das gerações e o massacre de pessoas e as mudanças de reis – e o juramento sempre lembrado, e os Forjadores da Espada, em seu trabalho secreto, escondidos em florestas e cavernas. Então a estranha história dos reis sem coroa que, perambulando em outros países, viveram e morreram em silêncio e reclusão, frequentemente trabalhando duro com as próprias mãos para conseguir o pão do dia-a-dia, mas nunca se esquecendo de que deveriam ser reis, e deveriam estar prontos – mesmo que Samávia nunca chamasse. Talvez a história inteira enchesse volumes demais para alguém poder admitir que foi contada integralmente.

Mas a história torna claro o crescimento do Partido Secreto – embora ela pareça quase não ser mais história, apesar de seus esforços de ser breve e falar somente de fatos enfadonhos, quando é forçada a lidar com o fato de que os Portadores do Sinal eram dois simples meninos, que, sendo soprados sem serem notados como dois grãos de pó pela Europa, acenderam a Lâmpada cuja chama fulgurou até o céu como se da própria terra saltassem samavianos aos milhares prontos para alimentá-la – os Iarovitch e os Maranovitch eliminados para sempre e somente samavianos restaram para proclamar alto em glorificação ardente e adorar a Deus por trazer de volta seu Príncipe Perdido. O grito de guerra de seu nome tinha dado fim a cada batalha. Espadas caíram das mãos por não serem mais necessárias. Os Iarovitch fugiram em terror e desânimo; os Maranovitch simplesmente desapareceram. Entre a noite e a manhã, como os jornaleiros disseram, o estandarte de Ivor foi levantado e tremulou do palácio e também da cidadela. Vindos de montanhas, florestas e planícies, vindos da capital, dos vilarejos e de outras cidades, seus seguidores formaram um bando para dar sua submissão; legiões destruídas e feridas cambaleavam ao longo das estradas para se juntarem; mulheres e crianças seguiram, chorando de alegria e entoando canções de louvor.

Os países mais poderosos estenderam seus cetros para o país ultimamente ignorado e desamparado. Trens carregados de alimentos e suprimento necessários de todos os tipos começaram a atravessar a fronteira; o auxílio das nações estava sendo concedido. Samávia, em paz para cultivar sua terra, para criar seus rebanhos, para extrair seus minérios, logo seria capaz de pagar por tudo. A Samávia dos séculos passados fora rica o suficiente para fornecer grandes empréstimos, e estocara grandes colheitas à qual países em guerra ficavam gratos em recorrer. A história da coroação do Rei foi a mais extravagante – a multidão de pessoas extáticas, famintas, esfarrapadas, muitas delas fracas e feridas, pedindo que ele fosse servido por eles para seu castelo bombardeado e quebrado e que na antiga sala do trono fosse colocada a coroa em sua cabeça, para que assim mesmo os que talvez morressem por seus sofrimentos passados tivessem ao menos prestado suas pobres honras ao Rei Ivor que governaria seus filhos e traria de volta a Samávia sua honra e sua paz.

― Ivor! Ivor! ― eles gritavam alegremente. ― Ivor! Ivor! ― em suas casas, nas estradas, nas ruas.

“A história da Coroação no castelo antigo com seu teto destruído por bombas”, dizia um jornal importante de Londres, “parece como se fosse uma lenda da Idade Média. Mas, como um todo, ainda existe no caráter nacional de Samávia algo das grandes lendas.”

Lázaro, tendo comprado e lido no seu quarto de cima cada jornal que possuísse os detalhes que chegaram a Londres, retornou para reportar quase literalmente, de pé na frente de Marco, com os olhos sob suas grossas sobrancelhas algumas vezes flamejantes de exultação, outras vezes cheios de lágrimas. Ninguém conseguiria fazê-lo sentar-se. Todo o seu ser parecia ter se tornado forte em magnificência. Encontrando a sra. Beedle na passagem, ele passou a passos largos por ela com um ar tão trovejante que ela se virou e correu de volta para sua cozinha no porão, quase caindo nos degraus de pedra em suas imaginações nervosas. Em tal estado de humor, ele não era uma pessoa a ser encarada sem ter algo como reverência.

No meio da noite, O Rato de repente falou com Marco como se soubesse que ele estava acordado e o ouviria.

― Ele deu toda a sua vida para Samávia! ― ele disse. ― Quando você viajou de país a país, e viveu em buracos e esquinas, era porque dessa maneira ele podia escapar de espiões, e ver as pessoas que deviam ser levadas a entender. Ninguém mais poderia fazê-las ouvir. Um imperador começaria a ouvir quando visse sua face e escutasse sua voz. E ele podia ser silencioso, e esperar pelo momento certo para falar. Ele podia ficar quieto quando outros homens não conseguiam. Podia manter sua face calma – e suas mãos – e seus olhos. Agora toda a Samávia sabe o que ele fez, e que ele tem sido o maior patriota do mundo. Nós dois vimos como os samavianos eram naquela noite na caverna. Eles vão ficar loucos de alegria quando virem a face dele!

― Eles agora já viram ― disse Marco de sua cama em voz baixa. Então houve um longo silêncio, embora não tão silêncio porque a respiração do Rato era muito rápida e forte.

― Ele… deve ter estado naquela coroação! ― ele disse finalmente. ― O Rei… o que o Rei fará para… recompensar ele?

Marco não respondeu. Sua respiração podia ser ouvida também. Sua mente estava imaginando a mesma coroação: o castelo despedaçado e sem teto, as ruínas da antiga e magnífica sala do trono, a multidão de pessoas ajoelhadas e famintas, os soldados extenuados pela batalha, feridos e enfaixados! E o Rei! E seu pai! Onde será que seu pai ficou quando o Rei foi coroado? Com certeza, ficara do lado direito do Rei, e o povo adorara e aclamara os dois igualmente!

― Rei Ivor! ― ele murmurou como se estivesse num sonho. ― Rei Ivor!

O Rato se sentou de repente, se inclinando sobre o cotovelo.

― Você irá vê-lo ― ele exclamou. ― Ele não é mais um sonho. O Jogo não é um jogo agora – e está terminado – foi ganho! Era real – ELE era real! Marco, não acredito que você está me ouvindo.

― Sim, estou ― respondeu Marco, ― mas agora é quase mais um sonho do que quando era um sonho.

― O maior patriota do mundo é como um rei! ― O Rato falou entusiasmado. ― Se não há nenhuma outra honra maior para dá-lo, ele será feito um príncipe e Comandante Supremo e Primeiro Ministro! Você não consegue ouvir aqueles samavianos gritando e cantando? Você verá tudo! Lembra do alpinista que disse que iria guardar os sapatos que fez para o Portador do Sinal? Ele disse que um grande dia talvez viesse quando poderia mostrá-los às pessoas. E este dia veio! Ele vai mostrá-los! Consigo imaginar como eles reagirão! ― Sua voz de repente parou como se tivesse caído num buraco. ― Você verá tudo! Mas eu não.

Marco acordou do seu sonho e levantou a cabeça. ― Por que não? ― ele demandou. Soou mais como uma exigência.

― Porque sei que nem devo esperar por isso! ― O Rato gemeu. ― Você tem me levado por bastante tempo, mas você não pode me levar para um palácio de um rei. Não sou tão tolo assim para pensar que, mesmo de seu pai… ― ele parou de falar porque Marco fez mais do que simplesmente levantar a cabeça. Ele sentou-se reto.

― Você levou o Sinal o tanto quanto eu ― ele disse. ― Nós portamos o Sinal juntos.

― Quem iria ME escutar? ― exclamou O Rato. ― VOCÊ é o filho de Stefan Loristan.

― E você é o amigo do seu filho ― respondeu Marco. ― Você foi sob ordens de Stefan Loristan. Você era o EXÉRCITO do filho de Stefan Loristan. Tenho falado isso para você. Aonde eu for, você também irá. Não diremos mais nada sobre isso. E ponto final.

E deitou-se de novo no silêncio de um príncipe de sangue. O Rato sabia que ele quis dizer o que disse e que Stefan Loristan também diria o mesmo. E por ele ser um menino, começou a imaginar o que a sra. Beedle faria quando ouvisse o que havia acontecido. O que acontecera o tempo inteiro era que um alto “estrangeiro” com roupas esfarrapadas havia morado na sua sala de estar dos fundos, sendo observado bem de perto a fim de que não saísse sem pagar seu aluguel como estrangeiros esfarrapados às vezes faziam. O Rato se viu tentando ficar em pé o mais alto que podia nas suas muletas enquanto falava para ela que esse estrangeiro era… bem, era pelo menos o amigo de um Rei e tinha dado a ele sua coroa e seria feito um príncipe e Comandante Supremo e Primeiro Ministro porque não teria uma posição mais alto para dar-lhe. E seu filho, a quem ela havia insultado, era amado por Samávia porque ele tinha levado o Sinal. E também se ela estivesse em Samávia e Marco quisesse fazer isso ele poderia demolir a pensãozinha desgraçada dela em pedaços e pôr ela numa prisão; e isso seria bem feito para ela.

O próximo dia passou, e depois o próximo… e então veio uma carta. Era de Loristan, e Marco ficou pálido quando Lázaro deu a carta para ele. Lázaro e O Rato saíram imediatamente do quarto e o deixaram ler a carta a sós. Evidentemente não era uma carta longa porque não foi depois de muitos minutos que Marco os chamou de novo para entrarem no quarto.

― Em alguns dias, amigos mensageiros do meu pai virão para nos levar para Samávia. Você, Lázaro e eu iremos ― ele disse para O Rato.

― Deus seja louvado! ― Lázaro disse. ― Deus seja louvado!

Antes de os mensageiros chegarem, era o fim da semana. Lázaro havia arrumado as malas com os poucos pertences que tinham e no sábado a sra. Beedle podia ser vista vigiando de cima das escadas do porão quando Marco e O Rato saíram da sala de estar dos fundos.

― Você não precisa ficar olhando para mim com seus olhos penetrantes assim ― ela disse para Lázaro que estava olhando fixamente para ela da porta que havia aberto para eles. ― Jovem Mestre Loristan, quero saber se você ficou sabendo quando seu pai vai voltar?

― Ele não voltará ― disse Marco.

― Ele não vai, hein? Bem, então como que fica o aluguel da próxima semana? ― disse a sra. Beedle. ― Tenho notado que seu servo está arrumando as malas. Ele não tem muito para levar mas não sairá daquela porta da frente até que eu receba o que está me devendo. Pessoas que conseguem arrumar as malas facilmente pensam que podem sair de fininho, mas serão observados bem de pertinho. A semana termina hoje.

Lázaro virou-se e a encarou com um gesto firme. ― Você julga pela aparência de fora das coisas, senhora ― ele declarou. ― Você só vê com seus olhos. Mas veja agora e admire a coisa magnífica que está parando bem na frente das suas grades desprezíveis.

Uma carruagem estava parando, aliás uma bela carruagem marrom escuro. O cocheiro e o criado vestiam librés douradas e marrom escuro e o criado pulou de onde estava sentado e abriu a porta com entusiasmo respeitoso.

― Eles são amigos do Mestre vindo para apresentar seus cumprimentos a seu filho ― disse Lázaro.

― Seu dinheiro está seguro ― disse Marco. ― Podemos continuar nossa conversa depois.

A sra. Beedle olhou de relance para os dois cavalheiros que entraram pelas grades quebradas. Eles não eram da classe que pertencia a Philibert Place. Para eles parecia que a carruagem e as librés douradas e marrom escuros eram coisas do dia-a-dia.

― Em todo caso, eles são homens e não dois meninos sem uma moeda ― ela disse. ― Se eles são amigos de seu pai, eles me dirão se meu aluguel está seguro ou não.

Os dois visitantes estavam na soleira da porta. Os dois eram homens do tipo com dignidade auto-controlada e quando Lázaro abriu totalmente a porta, eles entraram dentro do pobre corredor como se nem o tivessem visto. Eles olharam além da sua esqualidez, além de Lázaro e do Rato e da sra. Beedle – ATRAVÉS deles, como eram, para Marco. Marco foi na direção deles imediatamente.

― Vocês foram mandados por meu pai! ― ele disse, e deu sua mão primeiro para o mais velho e depois para o mais jovem.

― Sim, viemos sob ordens de seu pai. Eu sou o Barão Rastka e esse é o Conde Vorversk ― disse o homem mais idoso, e curvou a cabeça em reverência.

― Se eles são barões e condes e amigos de seu pai eles são homens prósperos o suficientes para serem responsável por você ― disse a sra. Beedle quase furiosamente porque ela estava um pouco intimidada e ressentia este fato. ― É a questão do aluguel da próxima semana, senhores. Quero saber de onde virá.

O homem mais idoso olhou para ela com um relance rápido e sem expressão. Ele não falou com ela mas com o Lázaro. ― O que ela está fazendo aqui? ― ele demandou.

Foi Marco que respondeu. ― Ela está com receio que não pagaremos o nosso aluguel ― ele disse. ― É de muita importância para ela que ela tenha certeza disso.

― Mande ela ir ― disse o senhor para Lázaro. Ele nem ao menos deu um relance para ela. Pegou algo de seu bolso do libré e deu para o velho soldado. ― Mande ela ir ― ele repetiu. ― Amanhã estaremos em nosso caminho para Samávia.

E por parecer que ela não era mais nem mesmo uma pessoa, a sra. Beedle de fato arrastou seus pés pelo corredor para as escadas da cozinha no porão. ― Não sei onde Samávia fica ― ela disse enraivecida ao tentar colocar seu chapéu preto reto novamente. ― Eu lhe asseguro que é um daqueles pequenos países estrangeiros que você mal consegue ver no mapa, e onde nem mesmo tem uma cidade Inglesa decente! Ele pode ir assim que quiser, contanto que pague seu aluguel antes de ir. Samávia, de fato! Você fala como se fosse o Palácio de Buckingham!

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