MARCO NÃO RESPONDE

1915

Marco Não Responde

Enquanto Marco começava a subir a escada, a mulher idosa levantou-se de seu assento na sala dos fundos e andou até a sala de jantar na frente. Um homem forte, de barba escura, estava em pé, como se esperasse por ela.

― Não pude fazer nada com ele ― ela disse imediatamente, com sua voz suave, falando gentilmente, como se o que dissera fosse a coisa mais natural do mundo. ― Eu fiz o truquezinho do pé torcido muito bem, e o trouxe para dentro da casa. Ele é um menino amável com modos perfeitos, e pensei que seria fácil surpreendê-lo em dizer mais do que ele sabia que estava dizendo. Você pode geralmente fazer isso com crianças. Mas ou ele não sabe de nada ou tem sido treinado para segurar sua língua. Ele não é estúpido, e tem um espírito nobre. Eu fiz uma pequena cena patética sobre Samávia, porque eu vi que aquilo poderia afetá-lo. E o afetou. Eu o tentei com o rumor do Príncipe Perdido; mas, se há verdade nisso, ele não sabe ou não quer saber. Tentei fazê-lo perder a calma e revelar alguma coisa para defender seu pai, o qual, pelo jeito, ele adora. Mas cometi um erro. Eu vi isso. É uma pena. Meninos podem algumas vezes serem levados a falar qualquer coisa. ― Ela falou muito rapidamente em voz baixa. O homem falou rapidamente também.

― Onde ele está? ― ele perguntou.

― Eu o mandei lá para cima, na sala de visitas, para procurar um livro. Ele vai procurar por alguns minutos. Ouça. Ele é um menino inocente. Ele me vê apenas como uma senhora gentil. Nada vai ABALÁ-lo tanto quanto me ouvir contar a verdade repentinamente. Será um choque tão grande que talvez você possa fazer alguma coisa com ele. Talvez ele perca o controle sobre si mesmo. Ele é somente um menino.

― Você está certa ― disse o homem barbudo. ― E, quando ele descobrir que não está livre para sair, pode ficar amedrontado e nós poderemos conseguir alguma coisa que valha a pena.

― Se pudéssemos descobrir o que é verdadeiro, ou o que Loristan pensa que é verdadeiro, teríamos uma pista para seguir.

― Não temos muito tempo ― o homem murmurou. ― Temos ordens para ir para Bósnia imediatamente. Antes da meia-noite nós devemos estar a caminho.

― Vamos para a outra sala. Ele está vindo.

Quando Marco entrou na sala, o homem forte com a barba escura e pontuda estava em pé ao lado da poltrona.

― Desculpe-me, não consegui achar o livro ― ele desculpou-se. Olhei em todas as mesas.

― Eu mesma serei obrigada a ir procurar ― disse a pequena senhora.

Ela levantou-se de sua cadeira e ficou de pé sorrindo. E no primeiro movimento Marco viu que ela não estava nem um pouco contundida. ― Seu pé! ― ele exclamou. ― Está melhor?

Não estava machucado ― ela respondeu, de modo surpreendentemente normal e com um sorriso retorcido. ― Eu apenas fiz você pensar que estava. ― Isso era parte de seu plano não poupá-lo do choque em sua transformação repentina. Marco sentiu-se sem respiração por um momento. ― Fiz você acreditar que eu estava machucada porque queria que você viesse para dentro da casa comigo ― ela acrescentou. ― Eu desejava descobrir certas coisas que tenho certeza de que você sabe.

― São coisas sobre Samávia. ― o homem interrompeu. ― Seu pai sabe, e você deve saber pelo menos alguma coisa. É necessário para nós ouvir o que você pode nos dizer. Não deixaremos você sair da casa até que responda certas perguntas que eu vou fazer.

Então Marco começou a entender. Ele ouvira seu pai falar sobre espiões políticos, homens e mulheres que eram pagos para investigar pessoas que certos governos ou partidos políticos desejavam que fossem seguidas e observadas. Ele sabia que era o trabalho deles descobrir segredos, disfarçar-se e viver entre pessoas inocentes como se fossem simplesmente vizinhos.

Eles deviam ser espiões pagos para seguir seu pai porque ele era um samaviano e um patriota. Ele não sabia que eles estavam naquela casa havia dois meses, e tinham executado várias coisas durante sua aparentemente inocente estada. Eles descobriram Loristan e ficaram sabendo de suas idas e vindas, e também das idas e vindas de Lázaro, Marco e do Rato. Mas eles pretendiam, se possível, descobrir outras coisas. Se o menino pudesse ser surpreendido e assustado até revelar coisas inconscientemente, seria de boa utilidade o tempo que ficaram a encenar esse melodrama antes de trancarem a porta da frente atrás de si e apressadamente atravessar o Canal, deixando o proprietário descobrir por si mesmo que a casa fora evacuada.

Na mente de Marco estranhas coisas estavam acontecendo. Eles eram espiões! Mas isso não era tudo. A mulher idosa estivera certa ao dizer que ele receberia um choque. Seu peito forte e jovem expandiu-se. Em toda sua vida, ele nunca estivera face a face com traição. Ele não podia compreender isso. Esse ser gentil e amigável com aquela voz grata e delicada e aqueles olhos gratos e delicados havia traído – TRAÍDO ele! Parecia impossível acreditar nisso, e ainda assim o sorriso curvado na boca dela lhe disse que era verdade. Quando ele saltara para ajudá-la, ela estava pregando uma peça nele! Quando ele se sentira triste pela sua dor e estremecera com o som de sua exclamação baixa, ela estava deliberadamente colocando uma armadilha para prejudicá-lo. Por alguns segundos ele ficou atordoado – talvez, se não fosse o filho de quem era, ele tivesse ficado unicamente atordoado. Quando os primeiros segundos passaram, surgiu vagarosamente dentro dele um senso de alguma coisa como elevado e remoto desdém. Isso cresceu em seus profundos olhos de menino enquanto ele fitava diretamente as pupilas daqueles olhos cinzas e penetrantes. Ele sentiu-se como se estivesse ficando mais alto.

― Você é muito esperta ― ele disse lentamente. Então, depois de uma pausa de alguns segundos, ele acrescentou ― Eu fui muito imaturo para saber que existe alguém tão… espertalhona… no mundo.

A pequena senhora riu, mas não facilmente. Ela dirigiu-se ao seu companheiro.

― Um ilustre cavalheiro! ― ela disse. ― Ao se olhar para ele, quase se acredita que é verdade.

O homem de barba parecia muito zangado. Seus olhos estavam ferozes e sua pele escura avermelhou-se. Marco pensou que ele o olhava como se o odiasse, e ficava furioso apenas de vê-lo, por alguma razão misteriosa.

― Dois dias antes de vocês deixarem Moscou, ― ele disse ― três homens vieram ver seu pai. Eles pareciam camponeses. Conversaram com ele por mais de uma hora. Eles trouxeram consigo um rolo de pergaminho. Isso é verdade?

― Não sei de nada ― disse Marco.

― Antes de vocês irem para Moscou, vocês estavam em Budapeste. Chegaram lá vindo de Viena. Vocês ficaram lá por três meses, e seu pai viu muitas pessoas. Algumas vieram no meio da noite.

― Não sei de nada. ― disse Marco.

― Você passou sua vida viajando de um país para outro ― persistiu o homem. ― Você sabe as línguas Europeias como se fosse um guia de viajantes, ou um porteiro em um hotel vienense. Não sabe?

Marco não respondeu.

A mulher velha começou a falar com o homem rapidamente em russo.

― Ouça-me, meu filho. Um espião e um aventureiro Stefan Loristan sempre foi e sempre será ― ela disse. ― Nós sabemos o que ele é. A polícia em todas as capitais da Europa o conhece como um trapaceiro e um vagabundo, e também como um espião. E ainda assim, com toda a sua esperteza, ele não parece ter dinheiro. O que ele fez com o suborno que os Maranovitch lhe deram por revelar o que ele sabia da velha fortaleza? O menino nem mesmo suspeita dele. Talvez seja verdade que ele não sabe de nada. Ou talvez seja verdade que ele tem sido tão maltratado e açoitado desde bebê que não ousa falar. Há uma expressão amedrontada em seus olhos apesar de sua gabolice infantil. Ele tem sofrido de fome e sido espancado.

O truque foi bem feito. Ela não olhou para Marco ao despejar suas palavras. Ela falou com a aspereza e a impetuosidade de uma pessoa cujos sentimentos estivessem no auge. Se Marco fosse sensível com relação a seu pai, ela tinha certeza de que sua juventude faria com que sua face revelasse alguma coisa, se sua língua não o fizesse – se ele entendesse russo, o que era uma das coisas que seria útil descobrir, porque era um fato que comprovaria muitas outras coisas.

A face de Marco a desapontou. Nenhuma mudança ocorreu, e o sangue não subiu até a superfície de sua pele. Ele ouviu com um ar desinteressado, indefinido e frio e educado. Deixou-os dizer o que preferissem.

O homem torceu sua barba pontuda e encolheu os ombros. ― Nós temos uma boa adega lá embaixo ― ele disse. ― Você vai para lá, e provavelmente ficará por algum tempo se não se decidir a responder minhas perguntas. Você acha que nada pode acontecer a você em uma casa numa rua de Londres onde policiais andam para cima e para baixo. Mas você está enganado. Se gritasse agora, mesmo que alguém pudesse ouvir, pensaria apenas que você é um menino levando uma surra merecida. Você pode gritar quanto quiser na escura e pequena adega, e ninguém nunca vai ouvir. Nós alugamos essa casa por três meses, e devemos deixá-la hoje à noite sem mencionar o fato a ninguém. Se resolvermos deixá-lo na adega, você vai esperar lá até alguém começar a perceber que ninguém entra nem sai, e tenha a oportunidade de mencionar isso ao proprietário – o que poucas pessoas se dariam ao trabalho de fazer. Vocês chegaram aqui vindo de Moscou?

― Não sei de nada. ― disse Marco.

― Você pode permanecer na boa, pequena e escura adega por um tempo desagradavelmente longo antes de ser achado ― o homem continuou, friamente. ― Você se lembra dos camponeses que vieram visitar seu pai duas noites antes de vocês partirem?

― Não sei de nada. ― disse Marco.

― Quando for descoberto que a casa está vazia e as pessoas entrarem para certificar-se, você pode estar fraco de mais para gritar e chamar a atenção delas.

― Vocês foram de Viena para Budapeste, e ficaram lá por três meses? ― perguntou o inquiridor.

― Não sei de nada. ― disse Marco.

― Você é muito jovem para a adega pequena e escura ― interveio a mulher velha. ― Não posso suportar ver você ir para lá!

― Não sei de nada. ― Marco respondeu, mas os olhos, que eram como os de Loristan, mostraram-na a mesma expressão que Loristan mostraria, e ela sentiu isso. Isso a deixou desconfortável.

― Não acredito que você já foi mal tratado ou espancado. ― ela disse. ― Vou lhe dizer, a adega pequena e escura vai ser uma coisa horrível. Não vá para lá!

Desta vez Marco não disse nada, mas olhou para ela fitando-a como se fosse algum grande jovem nobre que estivesse muito orgulhoso. Ele sabia que cada palavra que o homem barbudo falara era verdade. Gritar não teria utilidade alguma. Se eles partissem e o deixassem para trás, não havia como saber quantos dias passariam antes de as pessoas da vizinhança começarem a suspeitar que a casa estivesse vazia, ou quanto tempo passaria antes que ocorresse a alguém avisar ao proprietário. E nesse meio tempo, nem seu pai, nem Lázaro nem O Rato teria a mais vaga ideia de onde ele estava. E ele estaria sentado sozinho no escuro na adega. Ele não tinha a menor ideia do que fazer. Ele apenas sabia que silêncio ainda era a ordem.

― É um pequeno buraco preto-azeviche ― o homem disse. ― Você pode quebrar seu pescoço lá dentro, e ninguém vai ouvir. Vieram alguns homens falar com seu pai no meio da noite quando vocês estavam em Viena?

― Não sei de nada ― disse Marco.

― Ele não vai dizer ― disse a senhora. ― Tenho pena desse menino.

― Ele deve dizer depois de ter se sentado na boa, pequena e escura adega por algumas horas ― disse o homem com a barba pontuda. ― Venha comigo!

Ele colocou sua mão poderosa no ombro de Marco e o empurrou à sua frente. Marco não fez conflito. Ele se lembrou do que seu pai dissera sobre o jogo não ser um jogo. Não era um jogo agora, mas de algum modo ele teve uma sensação confiante de não ter medo.

Ele foi levado pelo corredor, em direção ao fundo da casa, e desceu os degraus comuns e pavimentados que levavam ao porão. Então foi obrigado a marchar através de uma passagem pavimentada, estreita e mal iluminada até uma porta na parede. A porta não estava trancada e ficava entreaberta. Seu companheiro a empurrou para abrir e mostrou parte da adega que era tão escura que Marco mal podia ver as prateleiras mais perto da porta. Seu captor o empurrou e fechou a porta. Era um buraco tão escuro quanto ele descrevera. Marco ficou imóvel no meio da escuridão semelhante a um veludo preto. Seu acompanhante virou a chave.

― Os camponeses que vieram até seu pai em Moscou falavam samaviano e eram homens grandes. Você se lembra deles? ― ele perguntou de fora.

― Não sei de nada ― disse Marco.

― Você é um jovem tolo ― a voz replicou ― E eu creio que você sabe ainda mais do que pensamos. Seu pai vai ficar muito perturbado quando você não voltar para casa. Vou voltar para ver você em algumas horas, se for possível. Vou dizer, porém, que eu tive notícias importunas que podem fazer-nos deixar a casa com pressa. Posso não ter tempo para vir aqui embaixo de novo antes de partir.

Marco ficou com as costas contra uma parte da parede e permaneceu em silêncio. Houve silêncio por alguns minutos, e então houve o som de passos indo embora.

Quando o último e distante eco morreu tudo ficou silencioso, e Marco deu um longo suspiro. Inacreditável como pode parecer, era de certo modo quase um suspiro de alívio. Na agitação de estranhos sentimentos que voaram sobre ele quando foi enfrentado com a situação assombrosa lá em cima, não foi fácil perceber o que seus pensamentos realmente eram; havia tantos deles e vieram tão rápido. Como poderia ele crer na evidência de seus olhos e ouvidos? Alguns minutos, apenas alguns minutos, mudaram sua grata e amável pessoa que conheceu numa sutil e astuta criatura da qual o amor por Samávia fora apenas parte de um plano para prejudicá-la e a seu pai. O que ela e seu filho queriam fazer – o que eles poderiam fazer se soubessem das coisas que estavam tentando forçá-lo a falar? Marco manteve suas costas contra a parede fortemente

― Será melhor pensar sobre o que primeiro?

Ele esperou alguns minutos para que a coisa certa lhe ocorresse. Ele se lembrou que seu pai não gostaria que ele entrasse em pânico.

― Não estou com medo ― Marco disse em voz alta. ― Não ficarei com medo. De algum modo sairei.

Este era o pensamento que ele mais queria manter firmemente em sua mente – que nada poderia deixá-lo com medo e que de algum modo ele sairia da adega. Ele pensou nisso por alguns minutos, e então se sentiu melhor.

― Quando meus olhos estiverem acostumados com o escuro, eu devo ver se existe algum pequeno raio de luz em algum lugar.

Ele esperou com paciência, e pareceu por algum tempo que não viu luz alguma. Estendeu suas mãos de cada lado e descobriu que, no lado da parede contra a qual ele estava, parecia não haver prateleiras. Talvez a adega fora usada para outros propósitos e não para armazenar vinho, e, se isso fosse verdade, poderia haver em algum lugar uma abertura para ventilação. O ar não era ruim, mas pensando bem a porta não estava completamente fechada quando o homem a abriu.

― Não estou com medo ― Marco disse em voz alta. ― Não ficarei com medo. De algum modo sairei. Ele não se permitiria parar e pensar em seu pai esperando por seu retorno. Sabia que isso apenas incitaria suas emoções e enfraqueceria sua coragem. Ele começou a apalpar o caminho cuidadosamente ao longo da parede. E foi mais longe do que pensou que iria.

A adega não era tão pequena. Ele moveu-se em volta dela pouco a pouco, e, quando já havia percorrido todo o caminho em volta, ele cruzou de lado a lado, mantendo suas mãos esticadas à frente e descendo cada pé cautelosamente. Então ele se sentou no chão de pedra e raciocinou de novo, e pensou que havia um jeito de sair daquele lugar, e de algum modo ele o acharia, e, antes de ter passado muito tempo, estaria andando na rua novamente.

Foi quando estava pensando nisso que sentiu uma coisa assustadora. Pareceu quase como se alguma coisa o tocara. Isso o fez pular, embora o toque fosse tão leve e suave que mal era um toque, de fato ele não tinha certeza se não imaginara isso. Ele ficou de pé e encostou-se na parede de novo. Talvez a brusquidão de seu movimento o colocara em algum ângulo que ele não atingira antes, ou talvez seus olhos tinham ficado mais acostumados com o escuro, porque, ao virar sua cabeça para ouvir, ele fez uma descoberta: acima da porta havia um lugar onde a negridão de veludo não era tão densa. Havia alguma coisa como uma fenda na parede, porém, como não abria para a luz do dia mas para a passagem escura, não era luz que entrava, mas uma parte menos escura da escuridão. Mas mesmo aquilo era melhor do que nada, e Marco deu outro longo suspiro.

― Isso é apenas o começo. Eu vou achar uma saída ― ele disse. ― Eu VOU.

Ele se lembrou de ter lido uma história de um homem que, sendo trancado por acidente em um cofre, passou por tais terrores antes de se libertar que acreditou que passara dois dias e duas noites no lugar quando esteve lá por apenas algumas horas.

― Os pensamentos desse homem fizeram aquilo. Preciso me lembrar disso. Vou me sentar de novo e começar a pensar em todas as pinturas das salas do Museu de Arte e História em Viena. Isso vai levar algum tempo, e também há aqueles outros. ― ele disse.

Foi um bom plano. Enquanto ele pudesse manter sua mente no jogo o qual o ajudara a passar por tantas horas tediosas, ele não podia pensar em nada mais, já que exigia muita atenção – e talvez, ao avançar o dia, seus captores começariam a sentir que não era seguro correr o risco de fazer uma coisa desesperada como essa. Eles podiam pelo menos pensar duas vezes antes de deixar a casa. Em qualquer caso, ele aprendera o suficiente de Loristan para perceber que apenas mal poderia vir se deixasse sua mente agir sem controle.

― Uma mente ou é um motor com uma engrenagem quebrada saltando, ou um poder gigante sob controle ― era o que eles sabiam.

Ele andara em imaginação por três das salas e estava virando mentalmente para uma quarta, quando se assustou de novo violentamente. Desta vez não fora um toque, mas um som. Com certeza fora um som. E estava na adega com ele. Mas fora o menor som possível, um minúsculo chio e um indício de um movimento. Viera do lado oposto da adega, o lado onde estavam as prateleiras. Ele olhou através da escuridão e viu uma luz sobre a qual não poderia haver engano. ERA uma luz, duas luzes na verdade, duas bolas redondas esverdeadas fosforescentes. Eram dois olhos fitando-o. E então ele ouviu outro som. Não um chio desta vez, mas alguma coisa tão simples e confortável que ele verdadeiramente explodiu em risadas. Era uma gata ronronando, uma amável e quente gata! E ela estava enrolada em uma das prateleiras mais baixas ronronando para alguns gatinhos recém-nascidos. Ele soube que havia gatinhos porque estava claro agora o que fora o chio, e ficou mais claro pelo fato de ele ter ouvido outro muito mais distinto e depois outro. Eles estavam todos dormindo quando ele entrara na adega. Se a mãe estivesse acordada, talvez tivesse ficada bem amedrontada. Depois disso ela talvez viera de sua prateleira para investigar, e passara perto dele.

O sentimento de alívio que veio sobre ele com essa inesperada e simples descoberta era maravilhoso. Era tão natural e confortável uma coisa do dia-a-dia que parecia fazer espiões e criminosos serem irreais, e apenas as coisas naturais serem possíveis. Com uma mãe gata ronronando entre seus filhotes, até mesmo uma adega escura não é tão escura. Ele se levantou e se ajoelhou perto da prateleira. Os olhos esverdeados não brilharam de forma hostil. Ele pode ver que a dona deles era uma gata grande e amável, e ele contou quatro pequenas bolas redondas de filhotes. Foi um curioso prazer acariciar o pelo macio e falar com a mãe gata. Ela respondeu ronronando, como se gostasse do senso de proximidade com um humano amigável. Marco riu para si mesmo.

― É engraçado, que diferença que faz! ― ele disse. ― É quase como achar uma janela.

A mera presença destas inofensivas criaturas era uma companhia. Ele sentou-se perto da prateleira baixa e escutando para o ronronar materno e, de vez em quando, falava e estendia a mão para tocar o pelo quente. A luz fosforescente nos olhos verdes era um conforto em si mesma.

― Nós vamos sair daqui, nós dois ― ele disse. ― Nós não vamos ficar aqui por muito tempo, gatinho.

Ele não estava perturbado pelo medo de ficar com muita fome por algum tempo. Estava tão acostumado a comer escassamente por causa da necessidade, e a passar longas horas sem comida durante suas viagens, que provara a si mesmo que jejum não é, afinal de contas, uma provação tão desesperadora quanto a maioria das pessoas imagina. Se você começa por esperar estar esfomeado e contar as horas entre as refeições, vai começar a ser voraz. Mas ele sabia melhor. O tempo passou lentamente; mas ele já sabia que passaria lentamente, e decidira-se não dar atenção e nem se perguntar sobre isso. Ele não era um menino impaciente, e, como seu pai, podia ficar de pé, ou sentado, ou deitado calmamente. De vez em quando podia ouvir ruídos distantes de carroças passando na rua. Havia um certo grau de companhia nisso também. Ele manteve-se em seu lugar perto da gata e sua mão onde podia ocasionalmente tocá-la. Ele podia levantar os olhos de vez em quando para o lugar onde o fraco vislumbre de algo como luz se mostrava.

Talvez o silêncio, talvez o escuro, talvez o ronronar da mãe gata, provavelmente os três juntos, fez seus pensamentos começarem a viajar por sua mente lentamente e mais lentamente. Finalmente eles cessaram e ele adormeceu. A mãe gata ronronou por algum tempo, e então adormeceu também.

o_principe_perdido.jpg aosseuspes.com
aosseuspes.com
Portugues Languages icon
 Share icon