"COMO VAMOS ACHA-LO?"

1915

Em Viena eles se viram no meio de um desfile. O Imperador dirigia-se em magnificência e cerimônia para celebrar a vitória de um século atrás e honrar as antigas bandeiras e a estátua coroada com louro de um príncipe-soldado de tempos antigos. Os pavimentos largos das grandes estradas principais estavam abarrotados com o povo observando o esplendor bélico ao passar marchando, cavalos pomposos, e o brilho de bainhas e correntes, e parecia que tudo, de algum modo, era parte de uma música em estouros triunfantes.

O Rato estava enormemente excitado pela magnificência do palácio imperial. Os imensos espaços, áreas e jardins, dominados por estatuas de imperadores, guerreiros e rainhas o fez sentir que qualquer coisa no mundo era possível. Os palácios e as colunas de arquitetura imponente, onde estatuas de bronze de cavaleiros montados em cavalos empinados cortavam o ar com sua beleza contra o céu, pareciam arrastar do seu mundo tudo a não ser cidades esplêndidas onde os imperadores passavam nas avenidas largas com bandeiras, soldados marchando e tinindo na frente e atrás, e trombetas douradas sendo tocadas. Parecia que deveria sempre ser assim – que as lanças e a cavalaria e os imperadores nunca parariam de passar. ― Eu gostaria de ficar aqui por bastante tempo ― ele disse quase como se estivesse num sonho. ― Eu gostaria de ver tudo.

Ele apoiou-se em suas muletas no meio da multidão e viu o brilho do desfile. De vez em quando ele olhava de relance para Marco, que também olhava com um olhar fixo do qual, O Rato notou, nada escaparia: Quão absorvido ele sempre estava no Jogo! Era impossível esquecê-lo ou lembrar dele somente como um menino faria! Muitas vezes parecia que ele nem era um menino. E o Jogo, O Rato teve certeza naqueles últimos dias, não era mais um jogo, mas algo de profunda e extrema determinação – algo que alcançava reis e tronos, e estava relacionado a governar e influenciar grandes países. E eles – dois meninos empurrados para lá e para cá pela multidão ao fixarem seus olhos nos soldados – carregavam com eles aquilo que até agora estava iluminando a Lâmpada.

O sangue nas veias do Rato corria rapidamente e o fez se sentir quente ao lembrar certas coisas que haviam se forçado na sua mente durante as últimas semanas. Tendo sua mente o hábito de querer “matutar as coisas”, durante as últimas duas semanas, pelo menos, havia seguido uma maravilhosa e até fantástica e agitada fantasia. Fora apenas uma insignificância que o fez a começar a trabalhar sua mente, mas, uma vez que começado, coisas que antes pareciam ser insignificantes não pareciam mais. Quando Marco dormia, O Rato ficava acordado de madrugada incitado e algumas vezes quase sem fôlego olhando para o passado e relembrando cada detalhe de suas vidas desde que se conheceram. Algumas vezes parecia que quase tudo que lembrava – o Jogo em primeiro lugar e acima de tudo – havia sido direcionado a somente uma coisa. E mais uma vez ele de repente sentiria que era um tolo e que deveria manter sua cabeça no lugar. Ele sabia que Marco não tinha imaginações fantásticas. Ele havia aprendido muito e sua mente era muito balanceada. Não tentava “matutar”. Somente pensava nas coisas sobre as quais tinha ordens para fazer.

“Mas,” O Rato disse mais do que uma vez nessas horas de madrugada, “se em algum tempo chegar a hora quando ele deve ser salvo ou eu, ele é quem não deve ser machucado. A morte não deve demorar muito – e seu pai me mandou com ele.”

Este pensamento passou pela sua mente ao os pés passarem marchando. Ao um repentino e esplêndido som de música que se aproximava irromper em seu ouvido, um estranho olhar contorceu sua face. Ele percebeu o contraste entre este dia e aquela primeira manhã atrás do cemitério, quando sentara na sua plataforma entre o Pelotão e olhou para cima e viu Marco na arcada no final da passagem. E por ele ter se mantido tão bem, havia jogado uma pedra nele. Sim, – um moleque tolo e cego ele havia sido: – seu primeiro cumprimento para Marco fora uma pedra, só porque ele era quem ele era. Ao ficarem em pé no meio da multidão nessa cidade longínqua e estrangeira, não parecia ser verdade que fora ele quem fizera aquilo.

Ele dirigiu-se para mais próximo do lado de Marco. ― Não é esplendido? ― ele disse ― Gostaria de ser um imperador. Eu teria estes caras fazendo isto todos os dias. ― Ele disse isso só porque queria dizer algo, queria falar algo, como razão de se aproximar dele. Queria estar próximo dele o suficiente para tocá-lo e sentir que realmente estavam juntos e que tudo não era um tipo de sonho magnífico em que talvez acordaria e se acharia deitado na sua pilha de panos velhos no seu canto do quarto em Bone Court.

A multidão inclinou-se para frente na ansiedade de ver o ponto principal do desfile – o Imperador na sua carruagem. O Rato inclinou-se para frente com o resto para vê-la passar.

Uma pessoa majestosa com cabelo branco e um bigode vestida em um esplendido uniforme decorado com joias e muitas plumas verdes-esmeraldas balançando no seu chapéu militar gravemente saudava as pessoas que estavam gritando dos dois lados. Ao lado dele sentava-se um homem uniformizado, decorado e também com plumas verdes-esmeraldas, porém era muito mais jovem.

O braço de Marco tocou o do Rato quase no mesmo momento que o do Rato tocou o dele. Entre as plumas balançando os dois viram a face cansada, cínica e pálida, um esboço da qual estava escondido na abertura da manga de Marco.

― O que senta próximo ao Imperador é um Arquiduque? ― Marco perguntou ao homem mais próximo a ele na multidão. O homem respondeu cordialmente. Não, ele não era, mas era um certo Príncipe, um descendente do homem que era o herói do dia. Ele era um grande favorito do Imperador e também era uma pessoa muito importante, possuindo um palácio que continha pinturas celebradas por toda a Europa.

― Ele faz de conta que só se importa com pinturas, ― Ele continuou, encolhendo seus ombros e conversando com sua esposa, que começou a escutar, ― mas é um cara esperto que se diverte com coisas que declara que nem se importa – coisas importantes. É o jeito dele parecer enfadado e sem interesse em nada, mas dizem que tem o jeito de saber segredos perigosos.

― Ele mora no Hofburg18 com o Imperador? ― perguntou a mulher, esticando seu pescoço para ver a carruagem imperial.

― Não, mas ele frequentemente está lá. O Imperador é solitário e enfadado também, sem dúvida, e esse cara tem seus jeitos de fazê-lo esquecer de seus problemas. Ouvi falar que de vez em quando os dois vestem-se como homens comuns e saem para a cidade para ver como é conviver com o resto do mundo. Eu suponho que é verdade. Eu gostaria de tentar isso de vez em quando, se precisasse sentar num trono e usar uma coroa.

Os dois meninos seguiram a celebração até o final. Eles viram o homem com a face pálida várias vezes, mas ele sempre estava tão rodeado que era impossível chegar próximo o suficiente dele. Aconteceu uma vez, entretanto, que ele olhou por uma brecha temporária no aglomerado de pessoas e notou repentinamente uma face bastante atenta de um menino forte e moreno que parecia estar pesquisando minuciosamente. Foi algo no olhar fixo de atenção que fez olhar para ele curiosamente por alguns segundos, e Marco encontrou seu olhar diretamente.

“Olhe para mim! Olhe para mim!” o menino dizia a ele mentalmente. “Eu tenho uma mensagem para você. Uma mensagem!”

Os olhos cansados da face pálida fixaram-se nele com uma certa luz crescente de interesse e curiosidade, mas o aglomerado de pessoas moveu-se e a brecha temporária fechou-se, de modo que os dois não conseguiram mais se ver. Marco e O Rato foram empurrados para trás pelos mais altos e fortes do que eles até que estavam na borda da multidão.

― Vamos para o Hofburg. ― disse Marco. ― Eles voltarão para lá e devemos vê-lo de novo mesmo que não consigamos nos aproximar.

Eles caminharam para o Hofburg pelas ruas menos abarrotadas, e depois esperaram o mais perto do grande palácio que podiam. Eles estavam lá quando, encerradas as cerimônias, a carruagem voltou, mas, embora tenham visto o homem de novo, estavam a certa distância dele e ele não os viu.

Passaram-se quatro dias singulares. Foram dias singulares por terem sido cheios de incidentes tantalizantes. Nada parecia mais fácil do que ouvir falar do favorito do Imperador e vê-lo, mas nada era mais impossível do que aproximar-se perto o suficiente dele. Ele parecia ser um favorito entre o populacho, e as pessoas comuns da classe de lojistas e trabalhadores falavam livremente dele – sobre aonde estava indo e sobre o que estava fazendo. Hoje à noite era certeza de que ele estaria nessa grande casa ou naquela, nessa festa ou naquele banquete. Não havia dificuldade em descobrir que com certeza ele iria para a ópera, ou teatro, ou o Palácio de Schönbrunn19 com seu mestre imperial. Marco e O Rato ouviam conversas normais sobre ele vez após vez e de uma parte da cidade até a outra o seguiram e esperaram. Mas era como correr atrás do vento. Evidentemente era uma pessoa muito inteligente e importante para ser permitido a andar sozinho. Sempre havia pessoas com ele que pareciam estar absorvidas na sua conversa cínica e lânguida. Marco pensou que ele nunca parecia se importar muito com seus companheiros, embora seus companheiros sempre pareciam estar entretidos com o que ele falava. Podia-se notar que riam bastante, embora ele raramente desse um sorriso.

― Ele é um daqueles sujeitos com o truque de falar gracinhas como se não conseguisse ver humor nelas. ― O Rato o resumiu. ― Pessoas assim sempre são mais espertas do que o outro tipo.

― Ele é uma pessoa muito fina e rica para não ser seguido para todo lado. ― eles ouviram um homem numa loja dizer um dia ― mas fica cansado disso. Às vezes, quando está muito enfadado para suportar isso, ele diz para as pessoas que foi para algum lugar nas montanhas, mas, na verdade, está todo o tempo trancado sozinho com suas pinturas no seu próprio palácio.

Naquela mesma noite O Rato entrou no sótão deles com a face pálida e desapontada. Ele esteve fora comprando algo para comer depois de um dia longo e árduo onde percorreram muito chão, viram o homem três vezes, e cada vez em circunstâncias que o tornava mais inacessível do que nunca. Eles haviam voltado para o pobre quarto deles cansados e com muita fome.

O Rato jogou suas compras na mesa e jogou-se numa cadeira. ― Ele foi para Budapeste. ― ele disse. ― E AGORA, como o acharemos?

Marco estava meio pálido também, e por alguns segundos pareceu-se ainda mais pálido. Foi um dia difícil, e, na pressa de alcançarem lugares que ficavam a longa distância um do outro, eles haviam esquecido da necessidade de comerem.

Eles ficaram sentados por alguns minutos quietos porque parecia que não havia nada a dizer. ― Estamos muito cansados e com fome para podermos pensar bem. ― Marco disse finalmente. ― Vamos comer nosso jantar e depois irmos dormir. Até termos descansado, devemos tentar não pensar sobre isso.

― Sim. Não adianta conversar quando está cansado. ― O Rato respondeu um pouco triste. ― Você não consegue raciocinar direito.

O jantar foi simples, mas comeram bem e sem palavras. Mesmo depois de terminarem de se preparar para dormir, falaram muito pouco. O sono veio para eles – um sono profundo, tranquilo, e saudável. Se tivessem ficado mais ressentidos do trabalho perdido, o sono teria vindo com menos facilidade e teria sido menos natural. Nas suas conversas com Loristan, haviam aprendido que um grande segredo de força e coragem inabalável é confiar naquele que os enviou e recusar a ficar ansioso; em vez disso devem esperar pelo o momento certo.

Quando Marco abriu seus olhos de manhã, viu O Rato deitado olhando-o. Os dois sentaram-se na cama no mesmo momento.

― Creio que estamos pensando a mesma coisa. ― disse Marco. Eles frequentemente descobriam que estavam pensando as mesmas coisas, ao se tornarem mais e mais como Loristan.

― Eu também. ― respondeu O Rato. ― Isso mostra que estávamos tão cansados que nem pensamos sobre isso ontem à noite.

― Sim, estamos pensando a mesma coisa. ― Marco disse. ― Nós dois lembramos o que ouvimos sobre ele se trancar sozinho com suas pinturas, fazendo com que as pessoas cressem que havia ido embora.

― Ele está no palácio agora. ― O Rato anunciou.

― Você tem certeza disso também? ― perguntou Marco. ― Você sentiu certeza disso assim que acordou?

― Sim ― respondeu O Rato. ― Como se ele mesmo tivesse falado.

― Eu também. ― disse Marco.

Era um dia ensolarado e, mesmo havendo somente uma janela no sótão deles, o sol emitia sua luz para dentro ao comerem o café da manhã. Depois, inclinaram-se na janela e conversaram sobre o jardim do Príncipe. Eles conversaram sobre o jardim porque era um lugar aberto ao público e haviam andado envolta dele mais de uma vez. O palácio, que não era muito grande, situava-se no meio. O Príncipe era bondoso o suficiente para deixar pessoas calmas e bem comportadas passearem pelo jardim. Não era um parque elegante mas um retiro agradável para pessoas que às vezes levam seu trabalho ou livros e sentavam-se nos bancos espalhados aqui e acolá entre os arbustos e flores.

― Quando fomos lá pela primeira vez, notei duas coisas. ― Marco disse. ― Há uma sacada ao lado do palácio que forma uma saliência e olha para o Jardim da Fonte. Naquele dia havia cadeiras em cima dela como se O Príncipe e seus visitantes às vezes se sentassem lá. Perto de lá havia um arbusto grande de sempre-viva e eu vi que tinha um espaço vazio dentro dela. Se alguém quisesse ficar dentro do jardim toda noite para olhar as janelas quando ficassem acesas e ver se alguém saísse na sacada, podia se esconder no buraco e ficar lá até a manhã.

― Há lugar para dois dentro do arbusto? ― O Rato perguntou.

― Não. ― Eu devo ir sozinho. ― disse Marco.

18Hofburg é um palácio em Viena, Áustria. Até 1918 era onde o Imperador do Império Austro-Húngaro reinava. Hoje, este palácio é a residência oficial do Presidente da Áustria e também tem um museu, um opera, estábulos e contém as Joias da Coroa. Back

19O Palácio de Schönbrunn (alemão para “bela nascente”), também conhecido como o Palácio de Versalhes é localizado também em Viena. Na época este palácio era usado pelos imperadores da Áustria durante as férias do verão. Neste castelo viveu até 1817, data de seu casamento com D. Pedro I, a arquiduquesa D. Leopoldina de Habsburgo, que teve tão grande papel na independência do Brasil. Hoje este palácio é preservada como um museu com vários monumentos históricos e culturais da Áustria. Back

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