O Paraíso Esquecido: o Cristianismo se Torna Religioso

A estratégia de Jesus era a princípio proclamar e demonstrar o Reino de Deus e convidar “qualquer um que tenha ouvidos para escutar” a abandonar suas vidas anteriores e abraçar a Dele. Ele não tinha a necessidade de coagir, nem interesse algum na acomodação. Ele já sabia que “arrumar” uma religião por meio de pequenos ajustes e reparos simplesmente não funcionaria.

19/12/2007

Paganismo Romano

À medida que suas legiões se espalhavam por três continentes, “Roma, a conquistadora, foi conquistada”. Sempre que uma nova cultura era absorvida, suas práticas e crenças afetavam profundamente o império cada vez mais pluralista. A religião com certeza não era uma exceção. Se você vivesse em Roma durante os séculos II e III, teria um “cardápio” de religiões à disposição para escolher a sua. Na realidade, no entanto, a maioria das religiões eram preparadas com os mesmos poucos ingredientes. Apenas a “apresentação” mudava.

O principal ingrediente e o pressuposto subliminar de cada religião pagã era o politeísmo. Havia literalmente centenas de “deuses” e “heróis” semidivinos. Acreditava-se que cada um tinha autoridade sobre uma área específica do mundo natural ou da sociedade humana. Alguns eram poderosos e governavam os oceanos, ou o sol, ou o céu. Outros eram muito mais locais, com uma esfera de influência que poderia não passar de um rio ou colina específico. Mas todos eram considerados divinos e achava-se apropriado adorar a um ou a todos eles—e é por isso que o império podia acolher tão facilmente novas religiões na mistura pagã.

Há outro pressuposto essencial no paganismo: os “deuses” têm um temperamento difícil e você não gostaria de vê-los zangados. Eles eram mesquinhos, ciumentos, voláteis e criminalmente despreocupados sobre os “efeitos colaterais” de suas fúrias. Sua cidade era ameaçada por saqueadores bárbaros? Era porque o “deus da guerra” estava aborrecido com algo. Melhor amarrar seu ídolo com correntes para prendê-lo! Uma praga estava devastando toda a sua região? Provavelmente a “deusa terra” estava ressentida com o fato de que o “deus sol” tinha matado seu filho centenas de anos atrás. Melhor fazer uma estátua do “deus sol” segurando um arco e flechas para que ele pudesse “atingir” a doença. Um terremoto danificou sua cidade, derrubando até os pilares de um dos templos pagãos? Obviamente o “deus dos tremores” estava zangado com o “deus” daquele templo. Melhor convocar um terceiro “deus” para repreendê-lo por vocês.

Esses cenários não são ficção. São exemplos reais da história romana, que mostram como as pessoas interpretavam as crises. E demonstram duas outras crenças centrais do paganismo.

Primeiro, o sofrimento humano não foi causado por pecado humano, mas por pecado “divino”. Nos mitos gregos e romanos, os “deuses” e “heróis” cometiam atos de assassinato, infanticídio, imoralidade, trapaça e traição. Sua fúria imprevisível aos humanos ou entre si era a verdadeira fonte da miséria humana. E segundo, o importante na religião é agradar aos “deuses” com o ritual apropriado realizado no local e dia apropriados. A santidade pessoal em pensamento e conduta, 24 horas por dia, 7 dias por semana, não era na verdade necessária. Os “deuses” não se importavam se seus pensamentos não tinham cobiça ou luxúria enquanto você caminhava pelo mercado. Eles estavam muito mais preocupados em ter seu respeito quando você passasse por seus santuários. A religião, então, era muito parecida com repartições públicas: resumia-se em saber como manter do seu lado um chefe mau-humorado—que podia determinar o seu sucesso ou a sua ruína.

Em uma típica cidade romana, era possível adorar a “denominação” pagã de sua escolha, com diversos templos e santuários dedicados a vários “deuses”. O templo teria um ídolo de alguma espécie e um altar, abrigado em uma estrutura ornamentada. Em termos práticos, agradar aos “deuses” significava manter seus ídolos limpos e em ordem, oferecendo a eles sacrifícios animais diários e honrando-os com festivais especiais. Uma vez por ano, talvez, o ídolo seria levado em procissão pela cidade, liderada por “equipes de adoração” especiais compostas por músicos, cantores e dançarinos.

Os templos ou santuários também eram um local em que se poderia procurar aconselhamento religioso. Em alguns, podia-se jogar dados ou escolher letras do alfabeto, que levariam a uma escolha a partir de uma lista de respostas gerais, parecidas com os biscoitos da sorte em um restaurante chinês. Outros santuários tinham oráculos muito mais elaborados. Cidades a centenas de quilômetros enviavam delegações inteiras, incluindo meninos cantores, para o oráculo a fim de perguntar como evitar uma praga ou encerrar um período de fome. Indivíduos também podiam fazer a peregrinação para consultar sobre seus negócios futuros ou apresentar questões filosóficas. Esses santuários combinavam o conceito de “lugar especial” e “homens especiais”. Um oráculo típico necessitava dos serviços de um “sacerdote” para a realização de sacrifícios, de um “profeta” para resmungar e murmurar incoerentemente e um “thespode” (“mensageiro”) para interpretar esses ruídos de pretensa inspiração e recitá-los em um verso ou dois de poesia grega para os clientes pagantes.

Deus, então, era visto nem como amigável, nem como acessível ou imediato. Ele era—ou, na visão pagã, “eles eram”—quase confinados com segurança na “caixa” oferecida pela religião. O paganismo romano ilustra claramente o que aconteceu com a sociedade humana após a Queda. A humanidade sentia em seu coração a separação de Deus. Os seres humanos não podiam negar a existência de Deus ou sua própria necessidade do favor Dele para sobreviver em um planeta decaído. Ainda assim, os humanos lutavam pelo máximo de independência de Deus que conseguissem. A solução era a religião. Os cidadãos do império ligavam a noção de “deus” a determinados lugares e dias especiais e a rituais conduzidos por especialistas treinados. Ao participar dessa religião, eles esperavam evitar a fúria divina e conseguir a bênção divina para suas colheitas e famílias e cidades. Essa religião externa os “libertava” da necessidade de se preocupar sobre o pecado pessoal ou a submissão a Deus em qualquer base diária íntima.

A deformação pagã da teologia explica porque eles odiavam tanto os primeiros cristãos: esses seguidores do carpinteiro crucificado eram “ateus” que se recusavam a honrar os “deuses” com a adoração ritualística. Ao serem tão teimosos, os cristãos estavam convidando desastre. Ninguém se importava com o que eles acreditavam; o império estava aberto para absorver outra religião. Porém a rejeição deles à tradição e sua recusa em fazer até mesmo uma oferenda simbólica de incenso eram vistas como uma ameaça à sociedade. Terremotos, fome, pragas e guerra podiam a qualquer momento dizimar o império mais avançado cultural e tecnologicamente que o mundo jamais tinha visto. Se isso acontecesse, seria porque os cristãos tinham insultado os “deuses”.

Entretanto, respeito era a última coisa que os primeiros cristãos sentiam pelo paganismo. Os cristãos não eram na verdade “ateus” em relação aos “deuses” de Roma. Eles rejeitavam a noção de que um ídolo poderia ser um “deus”, mas aceitavam que havia, no entanto, algum tipo de poder espiritual operando nas religiões pagãs. Como Paulo escreveu, “meus amados irmão, fujam da idolatria… Será que o sacrifício oferecido a um ídolo é alguma coisa? Ou o ídolo é alguma coisa? Não! Quero dizer que o que os pagãos sacrificam é oferecido aos demônios e não a Deus, e não quero que vocês tenham comunhão com os demônios” (1 Coríntios 10:14, 19-20).

Sim, você ouviu direito: Paulo chamou os “deuses” romanos de demônios, e essa linguagem não era mais politicamente correta no império romano pluralista do século I do que seria no mundo ocidental pluralista de nossos dias. Os autores e mestres cristãos dos séculos II e III concordavam com Paulo. Em suas disputas com os pagãos, eles não tentavam negar as histórias de milagres associadas a determinados santuários ou ídolos. No entanto, eles atribuíam esses milagres ao poder de demônios. As religiões pagãs não incluíam o conceito de um diabo ou demônio, mas os cristãos consideravam que toda a adoração pagã era direcionada para as “forças espirituais do mal em domínios celestiais”.

Durante esses séculos, os cristãos eram uma pequena minoria “dentro, porém não de” um mundo hostil. Eles sofriam ameaças internas e externas: internas, pela “atração gravitacional” da carne humana pela religião humana, e externas, pela pressão de uma maioria pagã antagônica.

“Indo para a Igreja” com a Nova Geração

Não devemos certamente pensar que os cristãos durante esse período diminuíram seus padrões e se misturaram felizes com o paganismo. Na verdade é exatamente o oposto; eles de fato se esforçaram bastante para permanecerem separados. Os cristãos que visitavam ou se mudavam para uma comunidade não eram acolhidos nas assembléias sem pelo menos uma boa carta de recomendação e um voto de confiança de no mínimo um membro. Durante as reuniões, muitas igrejas colocavam sentinelas na porta para desencorajar a entrada de pessoas não-aprovadas. Essas práticas eram comuns não apenas durante os períodos de perseguição, mas também em tempos de paz, conferindo aos cristãos o rótulo de “exclusivos”, dado por seus vizinhos pagãos zombeteiros.

A conversão à fé jamais ocorria com um pagão decidindo “ir à igreja”, onde ele ouvia um bom “sermão” e um chamar para “vir à frente” para depois orar com um “conselheiro”. Essas práticas modernas eram totalmente desconhecidas durante os séculos II e III. Em vez disso, a conversão era um aprendizado rigoroso de três anos, durante os quais o candidato recebia instruções para parar de pecar e era observado de perto quanto a qualquer lapso de comportamento. Os aprendizes recebiam ensinamentos sobre os fundamentos da fé, mas não tinham permissão para se encontrar com a igreja, para participar da Ceia do Senhor ou mesmo para receber o batismo até que o período experimental de três anos tivesse decorrido.1

É seguro dizer, então, que os cristãos durante essa era permaneceram leais ao conceito de ser uma “nação sagrada” e um “povo separado”. Mas e as advertências dos apóstolos e profetas—e do próprio Jesus—que finalizaram a revelação do Novo Testamento? Os “tempos terríveis” por eles previstos passaram? Um modo de responder a essa questão é olhar para as marcas da religião humana. Esses cristãos se desviaram de uma vida entrelaçada de submissão e confiança simples? Ou eles, ao contrário, compartimentalizaram a vida e designaram determinados lugares, dias ou pessoas como “especiais” e o resto, por implicação, como “comuns”?

Em relação aos “lugares sagrados”, a resposta parece ser “não”. Disto temos certeza: não havia “prédios de igreja” construídos em terras públicas até o final do século III—nenhum. Os cristãos continuavam se encontrando principalmente em residências. As únicas indicações de que a vida espiritual estava começando a ser tornar “localizada” em lugares especiais surge perto do final desse período, quando cristãos bem-intencionados passaram a remodelar suas casas para acomodar reuniões maiores. Os arqueologistas nos contam que na cidade de Duro-Europos, perto do Eufrates, os cristãos começaram a se encontrar em uma residência particular com uma sala que podia acomodar cerca e trinta pessoas. Em algum momento em torno do ano 240, o proprietário da casa fez algumas reformas, derrubou uma parede para criar uma sala maior, que poderia acomodar sessenta. Uma banheira também foi instalada em ocasião próxima a essa, presumivelmente para ser usada em batismos. Mas essa estrutura ainda permanecia como uma residência particular. Não era um “santuário” ou “prédio da igreja”, muito menos uma catedral. Não há nenhuma sugestão, nem da arqueologia, nem dos numerosos escritos dos primeiros cristãos, que tais estruturas existissem por mais de dois séculos após o Pentecostes.

Em relação a “dias especiais”, no entanto, encontramos evidências significativas de que “a fé uma vez por todas confiada aos santos” estava se metamorfoseando com regularidade em algo muito diferente. Para os primeiros cristãos, lembre-se, o “dia sagrado” era qualquer dia chamado “hoje”. Mas na metade do século II, lemos a primeira referência conhecida ao domingo como um dia especial para os cristãos. Ela vem da pena de Justino, um filósofo pagão convertido que ensinava teologia em Roma.

O domingo é o dia em que nos reunimos, pois é o primeiro dia em que Deus, transformando as trevas e a matéria, fez o mundo; e porque Jesus Cristo, nosso Salvador, neste mesmo dia, ressuscitou dos mortos. Pois Ele foi crucificado na véspera de sábado; e, no dia seguinte ao de sábado, que é domingo, Ele ressuscitou. (Justino Mártir, A Primeira Apologia, capítulo 67)

Foram necessárias cinco gerações após o Pentecostes. Mas em Roma, pelo menos, havia nascido um “dia sagrado dos cristãos” e com um irmão gêmeo conhecido como “culto dominical”. Era um acontecimento de importância histórica. O cristianismo sempre havia se concentrado no relacionamento, não nos encontros. A mudança estava a caminho.

Um trabalho da Síria, do século III, chamado “Didascalia”, fornecia regras para o culto de adoração. Era preciso atribuir um ambiente para permanência em pé ou sentado para idades e gêneros específicos. Um leitor devia ficar “em algum lugar alto” e apresentar duas passagens do Antigo Testamento. Depois um solista devia cantar alguns Salmos, com as pessoas “participando na conclusão dos versos”. Os cânticos eram seguidos por leituras do Novo Testamento. A congregação devia se levantar, voltada para o leste, e orar. Depois dos membros se saudarem com um beijo, eles deviam avançar “em fileiras” para compartilhar do pão e do vinho. Aparentemente não se esperava que o culto fosse muito excitante; um diácono era indicado para “supervisionar as pessoas para que ninguém sussurrasse, nem cochilasse, nem risse, nem se distraísse; pois todos devem permanecer na igreja em pé sensatamente, sóbrios e atentos, com sua atenção fixada na palavra do Senhor”.

Compare essa descrição com a única instrução de todo o Novo Testamento sobre como os cristãos deviam tratar suas reuniões corporativas, encontrada na correção de Paulo da ecclesia dos coríntios:

Portanto, que diremos, irmãos? Quando vocês se reúnem, cada um de vocês tem um salmo, ou uma palavra de instrução, uma revelação, uma palavra em uma língua ou uma interpretação. Tudo seja feito para a edificação da igreja. Se, porém, alguém falar em língua, devem falar dois, no máximo três, e alguém deve interpretar. Se não houver intérprete, fique calado na igreja, falando consigo mesmo e com Deus. Tratando-se de profetas, falem dois ou três, e os outros julguem cuidadosamente o que foi dito. Se vier uma revelação a alguém que está sentado, cale-se o primeiro. Pois vocês todos podem profetizar, cada um por sua vez, de forma que todos sejam instruídos e encorajados. O espírito dos profetas está sujeito aos profetas. Pois Deus não é Deus de desordem, mas de paz. (1 Coríntios 14:26-33)

Observe que a igreja do século I não tinha a necessidade de ter um diácono designado para manter as pessoas acordadas! Também visivelmente ausente? A atribuição de assentos, um “lugar elevado” para ficar, uma “ordem de adoração” planejada de antemão, uma cerimônia em torno da eucaristia, um “líder de adoração” ou uma “audiência”—em resumo, todas as características dos “cultos de adoração” do século III adiante. Quando os cristãos se reuniam no século I, não havia atribuição de nada. Não havia planejamento antecipado de nada. Não havia um leitor ou palestrante ou mestre designado que sempre dava a “mensagem da hora”. O tempo juntos fluía livremente, era dinâmico e interrompível (“se vier uma revelação a alguém que está sentado, cale-se o primeiro”). O Espírito de Jesus comandava a reunião, e não a tradição. Cada filho de Deus era um participante. Cada pessoa considerava que dom ele ou ela podia oferecer para edificar o Corpo inteiro. Todos estavam preparados para compartilhar.

As reuniões no século III eram seguras; as reuniões no século I às vezes não eram. É por isso que Paulo tinha que oferecer correção! Havia risco. Mas também havia vida. Vida! Quando o povo de Deus se reunia, eles descobriam-No renovado nos demais. Eles caminhavam e conversavam com Ele “no frescor do dia” juntos, como Ele sempre quis que Seu povo fizesse.

Começo do “Clero” e do “Leigo”

Em relação aos “homens sagrados”, os acontecimentos podem ter sido ainda mais perturbadores. Numa ruptura radical com a experiência e o ensinamento do Novo Testamento, uma hierarquia religiosa definida começava a emergir. No final do século III, cada assembléia local era governada por um único “bispo”, que tinha um alto grau de autoridade e desfrutava de um posto vitalício.

Certamente não havia sido sempre assim. Como já vimos, Jesus proibiu os títulos religiosos de qualquer tipo. Mesmo os apóstolos não deviam “ser senhores” ou “exercer autoridade” sobre os outros. Jesus enfatizou esse ponto para lembrá-los: “Um só é o Mestre de vocês, e todos vocês são irmãos”. Durante o século I, mesmo líderes de grande capacidade e fé honraram o comando de Jesus. Quando um líder local em uma assembléia se destacou da linha e começou a “gostar muito de ser o mais importante”, um apóstolo rapidamente o advertiu e repreendeu (3 João 9).

É verdade que Paulo havia reconhecido anciões em cada ecclesia quando as revisitou alguns anos após seu surgimento. Esses “presbíteros” deviam cuidar, nutrir e proteger os que eram “mais novos” na fé. Porém esses fiéis mais antigos na fé jamais deviam emular o modelo gentil de “autoridade” e jamais degeneraram para um só homem ser “o líder” ou uma definição de uma hierarquia. A despedida de Paulo para os presbíteros de sua amada Éfeso é clara: um grupo de homens—talvez até uma sala cheia deles—chamados “presbíteros” no texto era exortado a “cuidar de vocês mesmos e de todo o rebanho sobre o qual o Espírito Santo os colocou como bispos, para pastorearem a igreja de Deus, que ele comprou com o Seu Próprio Sangue”. Em uma passagem das escrituras inspiradas, vemos no texto original os mesmos homens mencionados como “presbyteros” (que significa “anciãos”), “poimenas” (que significa “pastores”) e “epískopos” (termo que designava originalmente os supervisores das cidades)—palavras que depois foram adotadas no vocabulário das religiões tradicionais como “presbíteros”, “pastores” e “bispos”. Porém, no mundo de Paulo, essas palavras de origem grega não tinham nenhuma conotação religiosa. Com certeza não eram “títulos” que designavam uma “função” ou “cargo”. Eram apenas descrições das pessoas que tinham a capacidade da fé madura e do discernimento (anciãos), que podiam nutrir e proteger os rebanhos de Deus (pastores) e que eram mais “elevadas” espiritualmente e, portanto, mais habilitadas a ter uma visão maior e uma perspectiva mais clara (supervisores). Essas palavras figurativas sempre descreviam um grupo de homens que, pela virtude dos dons e da maturidade, eram capazes de servir à ecclesia local. Elas jamais descreviam o comando de um só homem.

Conhecemos detalhes históricos suficientes para pelo menos esquematizar a evolução da criatura conhecida como o bispo do século III. Na década de 90, uma carta de um cristão em Roma para a igreja em Corinto ainda usava o termo “bispos”, no plural, para os homens da assembléia local. Porém, em 110, uma carta enviada para as maiores igrejas da província da Ásia—muitas das quais haviam recebido uma carta do próprio Jesus no livro do Apocalipse apenas uma geração atrás—mencionava um único bispo em cada igreja. Nem todos sentiam o apoio entusiástico da hierarquia emergente. “O Pastor de Hermas”, escrito mais ou menos nessa época, é encerrado com uma figura que simboliza a igreja emitindo a seguinte advertência: “Eu me dirijo agora aos chefes da Igreja e àqueles que ocupam os primeiros lugares. Não vos tornei semelhantes aos envenenadores. Eles levam seus venenos em frascos. Vós tendes vossa poção e veneno no coração”—o veneno, implícito, da ambição.

Porém no século II, os sinais aumentam constantemente de forma mais alarmante. Inácio escreveu que o bispo era “a imagem do Pai” e que o homem que não o reconhecesse como tal “não tenta enganar o bispo visível, mas Àquele que é invisível”. As pessoas deviam até mesmo sentir “reverência” por um bispo. Os que tentavam agir de forma independente da autoridade do bispo eram “servos do demônio”. Ou como Cipriano afirmou no século III, a oposição ao “ministro” de Deus era a oposição ao próprio Deus. Na metade do século III, o “leigo” em Roma supostamente dizia: “Um Deus, um Cristo, um Espírito Santo e em uma igreja deve haver um bispo”.

O mestre Orígenes tinha uma visão sombria desses acontecimentos:

Nós [líderes] aterrorizamos as pessoas e nos tornamos inacessíveis, especialmente quando são pobres. Em relação às pessoas que nos vêm pedir que façamos algo por elas, comportamo-nos como nem mesmo um tirano o faria: somos mais selvagens em relação aos pedintes do que quaisquer governantes civis. É possível ver isso acontecer em muitas igrejas reconhecidas, em especial nas cidades maiores. (Orígenes, Comentário sobre o Evangelho de Mateus 16:8)

Certamente outros se opunham ao desenvolvimento do “homem sagrado” no cristianismo. Se tudo estivesse indo bem, homens como Inácio jamais teriam sentido a necessidade de sustentar a autoridade do bispo. Ainda assim, ano após ano o “bispado” se tornava cada vez mais como uma ditadura eclesiástica.

Entretanto, no século III os bispos não usavam vestes diferenciadas, nem recebiam salários. Eles podiam receber uma parte das ofertas voluntárias dos crentes, mas não tinham rendimentos garantidos. Os salários durante aquele período existiam apenas em alguns grupos heréticos e eram considerados escandalosos entre as igrejas. E não havia a noção de uma hierarquia maior que a assembléia local; não havia um “bispo dos bispos” durante esses séculos. No entanto, a descida da encosta escorregadia da religião já estava começando a pegar velocidade. Desse ponto em diante, o pressuposto raramente questionado da maioria dos cristãos praticantes era de que eles precisavam de um clérigo profissional que estivesse entre o simples “leigo” e seu Deus.

Foi durante esse mesmo período que os cristãos deram outro enorme passo em direção à rendição de seu direito por nascimento a um relacionamento íntimo e imediato com Jesus. Ironicamente, ele veio por meio da coisa que mais admiramos nos fiéis durante essa era—sua coragem e perseverança apesar da perseguição. Até hoje ficamos emocionados com a confiança e a tranqüilidade de fiéis como Perpétua ou Policarpo, mesmo diante da tortura e da morte.

Não é difícil imaginar o impacto da fé dos mártires sobre seus contemporâneos. Os cristãos que eram presos por suas crenças, embora continuassem a falar com coragem por Jesus enquanto aguardavam sua sentença e execução, eram honrados como super-heróis da fé. A crença geral era a de que os cristãos no “corredor da morte” desfrutavam de uma proximidade inigualável com Deus. Com certeza, então, suas orações deviam ser especialmente eficientes. Seus companheiros de fé começaram a pedir que seus irmãos e irmãs aprisionados orassem por pecados pessoais ou outras preocupações. Após sua execução, os mártires eram continuamente apresentados como cristãos exemplares em quase toda a assembléia. As datas de suas mortes eram lembradas e comemoradas a cada ano, reforçando a mentalidade de “dia especial” que estava se firmando entre as assembléias locais.

Todo o conceito de martírio evoluiu constantemente mais distorcido. Melito, que tinha o título de “bispo de Sardes” no final do século II, escreveu: “Há duas coisas que dão a remissão de pecados: o batismo e o sofrimento em nome de Cristo”. Tertuliano, o líder do norte da África, afirmou com ainda mais clareza apenas uma geração depois: “Seu sangue é a chave do Paraíso”. Alguns cristãos até começaram a se voluntariar para o martírio, para espanto dos governantes pagãos.

No século III, as pessoas já tinham começado a colecionar “lembranças” dos fiéis martirizados—pedaços de roupas, efeitos pessoais e até ossos—em parte por inspiração, em parte como “bons amuletos espirituais”. As pessoas assumiram ainda mais a noção de pedir orações aos mártires. Os visitantes de seus túmulos solicitavam orações de intercessão dos fiéis mortos. A prática de “venerar santos” e suas relíquias havia começado.

As conseqüências para a fé foram monumentais. A veneração era outra camada de isolamento que separava as pessoas da intimidade com Deus. Na terra, a hierarquia desabrochante se colocava entre Deus e o homem. Nos céus, a crescente galeria de honra dos “santos” fazia o mesmo. A proximidade “aqui e agora” com Jesus que os primeiros discípulos haviam desfrutado—antes e depois de Sua ascensão—estava se tornando uma relíquia do passado.

A “Conversão” de Constantino

Ele foi uma das figuras que realmente mudou a direção da história para sempre. Em um sentido muito real, ele fundou uma religião. Seu nome era Constantino.

Seu pai fora designado como um dos quatro co-governantes do império romano. Constantino tinha uma grande mágoa por não ter sido também incluído entre os quatro. Ele acompanhou seu pai ao posto romano na Bretanha e esperou por sua hora. Quando seu pai morreu, Constantino fez com que as tropas o proclamassem o novo co-imperador. Nos três anos seguintes, lutou e manobrou para obter mais poder. Finalmente, no ano 312, Constantino estava pronto para deslocar suas tropas para o sul na esperança de conseguir o grande prêmio: Roma. Para tomar a cidade, seu exército tinha que cruzar a Ponte Mílvia, uma estrutura rochosa sobre o rio Tibre. O exército de seu rival saiu da cidade para defender a ponte. Foi lá que ocorreu algo que afetaria a história da igreja por pelo menos os próximos dois mil anos.

Não temos a narrativa pessoal de Constantino sobre os eventos. Temos apenas a história contada por dois conhecidos seus.

Apenas quatro anos depois do evento, Lactâncio, o futuro tutor dos filhos do imperador, escreveu que Constantino havia tido um sonho “na véspera da batalha”, no qual tinha recebido ordens de marcar os escudos de seus soldados com o “sinal celestial de Deus”.

Temos também a versão do senado romano sobre os eventos, preservada para nós em um monumento conhecido como o Arco de Constantino. Construído em 315, apenas três anos depois da “conversão” de Constantino e da posterior vitória, o arco mostra o registro conhecido mais antigo sobre os eventos. Sua inscrição afirma simplesmente que Constantino tinha vencido suas batalhas “instigado pela divindade”, sem especificar qual divindade o senado tinha em mente. A guarda pessoal do imperador é mostrada, mas não há nenhum “sinal da cruz” em seus escudos. Sobre eles pairam as tradicionais imagens dos “deuses” pagãos. Os senadores eram pagãos criando um monumento para outros pagãos. Talvez seja por isso que tenham omitido do arco qualquer referência ao cristianismo. Ainda assim, parece estranho que Constantino jamais tenha “corrigido” o monumento, se de fato o achava ofensivo.

Eusébio, escrevendo um quarto de século mais tarde e pelo menos uma dúzia de anos depois de ouvir a descrição dos eventos de Constantino, contou uma versão muito mais elaborada. Ele afirmou que o futuro imperador sabia que seu rival político em Roma estava usando feitiços e sacrifícios para convocar o apoio dos deuses pagãos. Constantino também sentia a necessidade de ter ajuda divina para seu exército. Foi então, de acordo com Eusébio, que Constantino e “todas as tropas” viram o sinal da cruz no céu do meio-dia, tendo abaixo a legenda “Com este sinal vencerá”. Naquela noite, afirma-se, Constantino viu Jesus em um sonho, que lhe ordenava que usasse o sinal da cruz “em seus confrontos com o inimigo”. No dia seguinte, Constantino ordenou que seus homens pintassem uma cruz em seus escudos. Depois desferiu o ataque, que teve um êxito maior que seus sonhos mais grandiosos. O império era dele.

Nunca saberemos o que aconteceu exatamente na Ponte Mílvia em 312. Mas uma coisa podemos dizer com certeza: nenhuma das três narrativas do “evento”, seja esculpida na pedra por pagãos romanos ou escrita em pergaminho por cristãos praticantes, faz qualquer menção a pecados, o Sangue, perdão, arrependimento, reconciliação ou um novo nascimento. É uma “conversão” estranha.

Durante muitos anos depois disso, Constantino demonstrou uma grande tolerância, ao ponto de misturar com a religião pagã dominante. Ele manteve o título imperial tradicional de pontifex maximus, o sacerdote supremo da religião pagã da Roma antiga.2 A imagem do “deus sol” pagão, adorado pelo pai de Constantino e pelos imperadores anteriores, aparece três vezes no Arco de Constantino. Os documentos imperiais oficiais, incluindo moedas, continuaram a mostrar esse “deus sol” até 324.

Em 325, Constantino convocou dois “concílios ecumênicos da igreja” para lidar com o problema da heresia. Bispos e outros líderes foram chamados em todo o império. Em um discurso atribuído a ele no primeiro desses concílios, Constantino citou livremente e extensivamente de duas fontes religiosas pagãs, uma delas uma profetiza lendária e a outra, um poeta romano clássico. Notavelmente, ele não apenas usou suas palavras como autorizadas, mas até tentou extrair princípios cristãos e textos comprovatórios delas. No ano seguinte, quando um importante sacerdote pagão quis fazer uma peregrinação ao Egito para ver um ídolo que supostamente emitia ruídos similares ao da voz humana, Constantino pagou a conta.

Constantino não gostava da cidade de Roma, então decidiu construir uma nova capital, Constantinopla, no leste. Na dedicação dessa cidade, em 330, ele organizou uma cerimônia que era metade cristã e metade pagã e colocou uma imagem da cruz sobre a carruagem do “deus sol” no mercado central.

Constantino só se batizou pouco antes de sua morte, em 337. Aparentemente ele temia que os pecados cometidos após o batismo não seria perdoados e, por isso, esperou até o último momento possível para realizar o ritual, segundo seu entendimento.

Realmente havia pecados com os quais se preocupar. Logo depois de Constantino tomar Roma, seu antigo aliado—que agora era visto como um concorrente—foi encontrado morto por estrangulamento. Em 326, Constantino executou seu filho mais velho por causa de acusações escandalosas contra ele. Alguns meses mais tarde, ao descobrir que havia sido enganado sobre o rapaz, executou o acusador—sua própria esposa, Fausta. Há poucas dúvidas de que Constantino era ambicioso e implacável em relação a garantir e proteger sua imagem e cargo.

Era essa a “conversão” de Constantino e o efeito dela em sua vida. Muito embora a autenticidade de sua conversão possa ser questionada, não se pode dizer o mesmo de seu impacto. O imperador se lançou a sua nova causa com a energia, paixão e engenhosidade. As mudanças que ele trouxe para sua religião durante uma única geração foram revolucionárias.

A “Conversão” do Cristianismo

A meta de Constantino era unificar o império sob o “sinal da cruz”. Ele via a si mesmo como uma criatura do destino, um mero instrumento nas mãos de Deus. Em uma carta aberta, com data de cerca de 324, escreveu:

Certamente não se pode considerar como arrogância de alguém que recebeu benefícios de Deus reconhecê-los nos termos mais grandiosos de louvor. Eu mesmo, então, fui o instrumento cujos serviços Ele escolheu, e considerado apropriado para a realização de Sua vontade. Portanto, começando no remoto oceano britânico… por meio da ajuda do poder divino bani e removi totalmente cada forma de mal que prevalecia, na esperança de que a raça humana, iluminada por minha instrumentalidade, pudesse ser recuperada por uma observância das leis sagradas de Deus, e que, ao mesmo tempo, nossa fé mais abençoada pudesse prosperar sob a orientação de Sua onipotente mão. (Eusébio, Vida de Constantino II, capítulo 28)

Essas são as palavras de um homem que se via quase em termos messiânicos. Era um homem com uma missão: erradicar o mal e iluminar a raça humana, para que o cristianismo pudesse prosperar. Como ele realizaria um objetivo tão grandioso?

Para começar, ele construiria “prédios da igreja”.

No início do século IV, apenas algumas poucas assembléias locais tinham dado o salto conceitual de se reunir em casas particulares reformadas para a construção de prédios com finalidade religiosa. Sabemos pelos documentos históricos de uma cidade no Egito que lá havia dois “prédios de igreja”, uma sinagoga e doze templos pagãos. Uma testemunha da grande perseguição no Egito em 303 fala sobre três outras cidades onde “basílicas” de algum tipo foram queimadas. Ainda assim, essas eram estruturas inexpressivas, provavelmente simples construções de madeira. Aparentemente, não eram apropriadas para uma religião imperial.

Constantino iniciou sua carreira como construtor erigindo uma enorme estátua de si mesmo, “dez vezes maior que a vida”, segurando uma “magnífica lança no formato de uma cruz” na seção mais movimentada de Roma. Depois construiu o primeiro de seus muitos “prédios de igreja”, também em Roma. Era magnífico, na verdade, um palácio: a Basílica de Latrão, que depois passou ao controle do “bispo de Roma” e até os dias de hoje pertence ao papa romano.

Sua mãe, Helena, também encorajou e ajudou a financiar esse programa de construções do século IV. Ela havia feito uma peregrinação à Palestina em 326, imediatamente após as execuções de sua nora e neto. Após seu retorno, Helena construiu uma elaborada basílica em torno de uma sala de seu palácio imperial, cobrindo o chão com terra de Jerusalém. Esse ambiente se destinava a servir como santuário para as relíquias que ela havia trazido como suvenires da “terra santa”. Entre as quinquilharias, diz-se, havia um osso do dedo indicador de Tomé, o mesmo que ele havia usado para colocar nas feridas de Jesus. O santuário existe até hoje.

Iniciou-se então uma onda inigualável de construção religiosa. Pelos próximos vinte e cinco anos, Constantino financiou diversas estruturas religiosas magníficas e suntuosas em todo o império. Ele ordenou que o bispo de Jerusalém construísse, às custas do dinheiro público, uma “Igreja do Santo Sepulcro” no suposto local do Gólgota. Ele também construiu uma basílica gigantesca sobre um santuário em Roma onde Pedro supostamente foi enterrado. Continuou a construir santuários semelhantes, que rivalizavam com qualquer templo pagão em magnificência, em Belém, Mamre, Nicomédia e Heliópolis. Sua própria cidade, Constantinopla, não podia ser deixada de lado. Gradualmente, ela se tornou repleta de santuários de mártires tomando o lugar do santuário politeísta em cada esquina conhecida pelos pagãos.

Entretanto, Constantino não se restringiu à construção de “lugares especiais”. Ele também deixou sua marca legislando sobre “dias especiais”. Em 321, ele decretou que o dies Solis —o dia do sol, equivalente a nosso domingo—seria um dia de descanso em todo o império:

Que todos os juízes, e todos os habitantes da cidade, e todos os mercadores e artífices descansem no venerável dia do Sol. Não obstante, atentam os lavradores com plena liberdade ao cultivo dos campos; visto acontecer a miúdo que nenhum outro dia é tão adequado à semeadura do grão ou ao plantio da vinha; daí o não se dever deixar passar o tempo favorável concedido pelo céu. (Constantino, Decreto de 7 de março de 321)

Novamente vemos aqui uma mistura curiosa entre o paganismo e o cristianismo, como Constantino o concebia. O “venerável dia” do deus-sol, a deidade que o pai de Constantino adorava, agora deveria ser comemorado com uma observância similar ao sabá. O conceito de um “culto de domingo” foi levado a um nível totalmente novo, com a oportunidade de tirar um dia de folga e se reunir nos novos e luxuosos “prédios da igreja”.

Constantino certamente estava deixando sua marca. Porém o maior impacto talvez venha de sua visão para o clero em desenvolvimento. Constantino concedeu a eles enormes privilégios e poderes. Nas cidades do império romano, os fundos para a maioria das funções públicas, incluindo jogos e celebrações, não vinham de impostos, mas das fortunas pessoais dos oficiais. O “amor de sua cidade”, se você fosse um membro da alta classe romana, significava gastar imensas quantias de sua riqueza pessoal para financias as funções públicas. Era, em essência, um imposto de renda com uma graduação acentuada. Legalmente, nenhum dono de propriedades estava isento. Constantino mudou o costume com um só decreto. A partir de 313, os bispos e o “clero” cristão ficaram isentos do fardo de terem um ofício. Tal recompensa financeira era tão grande que o imperador teve que emitir um segundo decreto proibindo que pagãos prósperos fingissem serem bispos para que pudessem evitar o serviço público!

Ao mesmo tempo, ele ampliou muito os poderes dos bispos. Em um processo civil ou até criminal, um bispo podia emitir um julgamento válido em qualquer outro tribunal. Constantino também convocou reuniões do clero no âmbito do império para legislar sobre determinadas questões religiosas. Cada vez mais o clero imitava a forma e o funcionamento de um governo secular. No final do século III, os governantes romanos haviam recebidos representantes chamados de “vigários” e as províncias haviam sido agrupadas em regiões maiores chamadas de “dioceses”. Essas palavras seriam apropriadas pela crescente burocracia religiosa apenas uma geração mais tarde. Sob Constantino, a hierarquia religiosa foi crescendo de uma expressão local para uma global.

Assim, o que tinha começado como uma descida gradual de uma encosta escorregadia nos séculos II e III, agora tinha se acelerado até virar uma queda livre no século IV. O cristianismo havia sido transformado em uma religião. Ela certamente assumira todas as marcas da religião humana, com lugares, dias e homens especiais. Constantino tinha feito muito para formular e promover essa mudança. Mas talvez seu maior impacto tenha sido a abertura das portas da igreja para uma nova raça de “convertidos” muito parecidos com ele. A “igreja” do século IV tinha um significado radicalmente diferente do que tinha para Paulo, Pedro ou João. A “associação como membro” agora era politicamente correta. Até estava na moda, era a escolha lógica para o jovem profissional romano em ascensão que quisesse seguir adiante no corajoso novo “império cristão”. Acima de tudo, a igreja agora era vista como algo a se comparecer. Ao invés de se encontrar furtivamente em residências particulares, temendo a batida na porta que significaria o início de outra rodada de perseguições, esses novos “cristãos” podiam se reunir abertamente em alguns dos prédios mais magníficos do império. E em vez de compartilhar a vida juntos, sete dias por semana, agora era possível “comparecer a cultos” no “venerável dia do sol”, sem grandes interferências na vida particular dos indivíduos.

Era mais fácil ser esse tipo de cristão do que não ser. E quando Roma caiu e a “idade das trevas” começou, todas as pessoas da Europa continental—com exceção de alguns poucos focos judeus—se autodenominavam cristãs.

A Acomodação do Paganismo

Por causa de Constantino e dos líderes que o sucederam, o clero tinha um problema perplexo em suas mãos. O “cristianismo”, como Constantino o tinha imaginado, devia se tornar a religião do estado. A cidadania no império (e nos reinos que o seguiram) ao final se tornaria equiparada à participação na igreja “católica” (ou seja, universal). Mas como “cristianizar” os cidadãos de um império pagão, muitos dos quais agora estavam “convertidos” na esperança de progresso social ou por causa da grande pressão de seus pares—ou mesmo pela ponta da espada?

Nas primeiras gerações do cristianismo, cada pessoa que unia seu coração à ecclesia o fazia voluntariamente, apesar a pressão de poderes políticos e religiosos antagônicos e profundamente arraigados. O vigor desse abandono completo, dado livremente, era inegável. Os cristãos não apenas resistiam a um ambiente hostil—eles se desenvolviam nele. Como o autor do livro dos Hebreus menciona,

Lembrem-se dos primeiros dias, depois que vocês foram iluminados, quando suportaram muita luta e muito sofrimento. Algumas vezes vocês forem expostos a insultos e tribulações; em outras ocasiões fizeram-se solidários com os que assim foram tratados. Vocês se compadeceram dos que estavam na prisão e aceitaram alegremente o confisco de seus próprios bens, pois sabiam que possuíam bens superiores e permanentes. (Hebreus 10:32-34)

A ecclesia vivia como uma família unida que tinha contado com o custo do comprometimento, e ainda assim havia decidido seguir Jesus, porque achavam que Ele valia a pena.

O cristianismo como religião do estado, no entanto, era bem diferente. A “igreja” agora devia abranger uma vasta população que preferia francamente sua religião pagã, mas estava se “unindo” à nova porque se sentiam na obrigação de fazê-lo. Daí o problema que os líderes religiosos tinham que enfrentar: como forçar a lealdade? Como fazer com que alguém goste de algo que não ama? Como fazer com que alguém rejeite uma religião pagã externamente quando ainda a adota internamente?

Uma das estratégias é a instrução, sob o pressuposto de que as pessoas queiram manter crenças e práticas pagãs apenas porque são ignorantes sobre as crenças de uma religião “melhor”. A estratégia foi aplicada, porém com um sucesso extremamente limitado. O pressuposto se provou ingênuo. A maioria das pessoas preferia sua vida antiga à nova, mesmo quando a nova lhes era explicada.

Uma segunda estratégia é a coerção. Durante toda a idade média, em vários momentos e lugares, de ações locais de líderes religiosos até os horrores disseminados da Inquisição, a coerção foi aplicada, muitas vezes com grande diligência. Porém as mentes mais sábias descobriram a verdade: a compulsão pode produzir uma aceitação externa ressentida, porém jamais pode efetuar uma mudança no nível do coração. A coerção e a conversão são, de fato, totalmente opostas.

Uma terceira estratégia é a acomodação. Se a maioria das pessoas prefere o antigo modo de viver, pode-se simplesmente tentar ajustar o “novo” modo de viver para que tenha parecer, soar e dar a impressão de ser como o antigo. A liderança religiosa adotou essa estratégia—algumas vezes, subconscientemente, porém com freqüência muito deliberadamente—e pelo menos conseguiu os resultados que esperava. Muitos elementos religiosos pagãos foram introduzidos no cristianismo, saneando-se suas qualidades mais questionáveis e “cristianizando” as qualidades mais sentimentalmente valorizadas, dando-lhes novos nomes e distorcendo levemente as práticas. O cristianismo foi pouco a pouco empurrado para mais perto das antigas religiões pagãs, até a maior parte da população da Europa sentir que a nova religião estava suficientemente dentro de suas zonas de conforto para ser aceitável.

Jesus, é claro, tinha uma idéia diferente. Ele nunca quis criar uma religião do estado—ou qualquer outra religião, diga-se de passagem. Ele descreveu o Seu caminho, o caminho para a Vida, como uma estrada estreita e difícil. A estrada está aberta a qualquer um, porém apenas uns poucos decidem segui-la (Mateus 7:14). A estratégia de Jesus era a princípio proclamar e demonstrar o Reino de Deus e convidar “qualquer um que tenha ouvidos para escutar” a abandonar suas vidas anteriores e abraçar a Dele. Ele não tinha a necessidade de coagir, nem interesse algum na acomodação. Ele já sabia que “arrumar” uma religião por meio de pequenos ajustes e reparos simplesmente não funcionaria. Como explicou:

“Ninguém tira um remendo de roupa nova e o costura em roupa velha; se o fizer, estragará a roupa nova, além do que o remendo da nova não se ajustará à velha. E ninguém põe vinho novo m vasilha de couro velha; se o fizer, o vinho novo rebentará a vasilha, se derramará, e a vasilha se estragará. Ao contrário, vinho novo deve ser posto em vasilha de couro nova. E ninguém, depois de beber o vinho velho, prefere o novo, pois diz: ‘O vinho velho é melhor!’” (Lucas 5:36-39).

Os oficiais religiosos dos séculos IV a XIV ignoram solenemente esse conselho. Era preciso. Eles tinham a obrigação de transformar o cristianismo em uma religião que qualquer um poderia e iria aceitar. De alguma forma, tinham que transformar o cristianismo em uma super-autopista em que todos pudessem viajar, mesmo se os viajantes preferissem algo diferente. Para atingir esse objetivo, tiraram pedaços da religião de Jesus e tentaram cobrir os furos mais embaraçosos do paganismo. Despejaram o vinho novo de Jesus nas vasilhas antigas da religião européia tradicional. Conseguiram seu objetivo; a população finalmente se adequou à nova religião do estado.

Na verdade, o vinho novo foi derramado. Mas a maioria achava que o vinho velho satisfazia, de qualquer modo.

1 Observe que não estamos defendendo o modelo do “aprendizado”. Certamente esses primeiros fiéis reconheceram que apenas as pessoas verdadeiramente salvas deveriam ser consideradas como membros da igreja, uma prioridade que parece visivelmente ausente da maioria dos círculos cristãos de nossa era. Certamente podemos apreciar a preocupação muito bíblica desses primeiros cristãos quanto à separação do mundo (veja, por exemplo, 2 Coríntios 6:14-18) sem imitar sua implementação bastante legal e regimentada de tal preocupação. Pelo menos eles se importavam. E nós? Back

2 É uma verdadeira ironia da história que algumas poucas gerações após Constantino, quando os imperadores de Roma abandonaram o título pontifex (“pontífice”) das religiões pagãs, os “bispos” de Roma tenham começado a usá-lo! O termo ainda é usado hoje por uma entidade religiosa para o chefe de sua hierarquia de liderança. Back

aosseuspes.com
Portugues Languages icon
 Share icon