Embora Eu Tenha Caído

18/6/2005

Não se alegre a minha inimiga com a minha desgraça.

Embora eu tenha caído, eu me levantarei. Embora eu esteja

morando nas trevas, o Senhor será a minha luz.

Miquéias 7:8

Assobiando suavemente uma melodia antiga de celebração, Ashira aproximou-se da casa de Jessé. A alegria que a notícia daquela manhã trouxera ainda corria pela sua mente e não podia ser contida. Com um pequeno pulo, ela alcançou a entrada lateral da casa deles e… ficou paralisada, sua mão se estendendo para a porta entreaberta.

—Elizabete! Quando que você vai aprender?!—a voz aguda soava de dentro da casa mal iluminada, alarmante e dolorosa aos ouvidos de Ashira.—Olhe só para esses pães! Você deixou eles por muito tempo de novo, e agora estão queimados!

Ziva já tinha chegado! Ashira arrepiou-se. Em um instante, seu júbilo se foi. “Ui!” ela suspirou. “Outra tempestade da Ziva!” No auge do verão um dos mais temidos fenômenos galileus era a sharkia; pois vinha furiosamente e sem aviso. O dia mais tranquilo podia em alguns minutos se transformar em torrentes geladas de chuva e num vento feroz que arrasava plantações e afundava barcos de pescar pegos de surpresa na devastação. Ashira sempre sentia um impacto semelhante com a presença da Ziva.

Todos os pensamentos do Messias e de seu pai se foram. A única coisa a fazer era aguentar as pontas e encarar o que viria.

Elizabete e Ziva, que estavam em pé perto do fogo, levantaram seus olhares. As duas faces estavam avermelhadas, uma de calor e vergonha e a outra de irritação. O cheiro de pão bem queimado enchia o ar enfumaçado. Ashira as cumprimentou e depois ficou em um silêncio desajeitado. Ziva não parou um momento a sua reclamação.

—Sabe quanto trabalho foi jogado fora por causa da sua falta de atenção? O trabalho da manhã inteira resultou nisto!—ela apontou para os pães achatados, torrados e escuros que estavam nas pedras que cercavam o fogo, onde brasas que estavam extinguindo-se brilhavam fracamente.—Vai e fala para seu pai que ele vai ter que esperar um pouco mais para sua refeição. Eu vou buscar mais madeira.

Ziva girou e foi batendo pé em direção à porta pela qual Ashira entrara. Olhando para o rosto atormentado de Ashira, encarou-a com as mãos na cintura.—Bem?! Você não veio aqui só para ficar olhando, né? Não veio na cabeça que você poderia ajudar?—sem esperar uma resposta, ela saiu batendo a porta.

A face de Ashira avermelhou-se e as ondas familiares de raiva irromperam-se sobre seus pensamentos. Ela jogou sua cabeça para trás.—Elizabete, faz quanto tempo que ela chegou?!

Elizabete, um pouco desajeitada, remexia com a própria túnica.—Hmm… chegou um pouco antes de você.

Ashira bateu sua mão na perna, enfurecida—Aquela mulher é uma especialista em causar encrencas! Será que ela não tem como ficar na dela?!

—Ashira, não fique amargurada. O mundo já está cheio disso. Devemos ter compaixão, não amargura. Não deixe seu coração se destruir.

Ashira calou a boca com força e os punhos dela ficaram brancos enquanto os cerrava. No fundo ela sabia que Elizabete estava certa mas ela não conseguia achar em si mesma nenhum outro sentimento para com a Ziva a não ser uma irritação furiosa. Ela de repente pensou em seu pai e sabia que ele estaria estourando com a mesma raiva se ele estivesse nessa situação. Todo mundo dizia que ela tinha o mesmo gênio de seu pai e ela estava começando a acreditar nisso. Ela sabia que isso precisava mudar.

Ela deu um relance para o pátio além da porta aberta. Esdras apareceu, carregando um homem pequeno e cansado em seus braços. Ela olhou nos olhos de Elizabete e deu um sorriso forçado.—Eu posso colocar as coisas em ordem aqui, Elizabete. Parece que Esdras poderia usar um pouco de ajuda com seu pai.

Elizabete passou sua mão sobre sua bochecha e acenou. Ashira se ajoelhou e começou a jogar os pães queimados dentro de um cesto e empilhar as cinzas velhas num pote. Pegando a vassoura de um canto, ela varreu o chão com movimentos rápidos mas aos trancos. Ela parou por um momento sua atividade agitada para dar uma olhada pela porta.

Juntos, Elizabete e Esdras abaixaram seu pai numa esteira na sombra de uma tamargueira que projetava sobre a parede do pátio. Eles apoiaram seu corpo fraco entre alguns colchões, cada movimento feito com o maior cuidado e bondade. Elizabete estendeu uma coberta que tecera sobre as pernas doentes e torcidas de seu pai, enquanto Esdras o trouxe água. Jessé disse algo que Ashira não conseguiu ouvir bem e os três riram juntos.

Ashira chacoalhou sua cabeça admirada. Desde a morte da mãe deles há anos atrás, os dois filhos de Jessé tinham cuidado do seu pai inválido, suprindo cada necessidade. O peso da responsabilidade que Esdras e Elizabete carregavam, mesmo que tinha ocupado muito de suas infâncias, foi consumido pelo amor completo que tinham pelo pai. Tinha causado uma maturidade além das suas idades.

“Não consigo imaginar,” Ashira pensou. “Perseverando por tudo que eles enfrentam, incluindo as constantes criticas de Ziva, com tanta paciência.”

—Ah, Ashira, obrigada! Agora toda aquela bagunça que fiz hoje de manhã sumiu!—Elizabete despertou Ashira de sua reflexão quando entrou no quarto.

—Alguns pães queimados não é uma grande tragédia—comentou Ashira ainda com um rancor que não queria ir embora.—Ziva nunca veria desse jeito, mas a maioria dos problemas são provocados por ela mesma. Ela faz parecer que a culpa está em todo mundo menos nela mesma. Eu, particularmente, tenho dificuldade em fazer qualquer coisa quando ela está por perto.

Elizabete trouxe a gamela e juntas as meninas começaram a trabalhar a água na farinha para uma nova massa de pão.—Não, foi descuido da minha parte. Estava tão atenta em preparar o tear corretamente que simplesmente esqueci do meu pão.

—Tá vendo?—Ashira cochichou quase triunfantemente.—Até a possibilidade de ela está aqui causa confusão!

Elizabete ficou em silêncio.

Naquele silêncio, Ashira começou a sentir-se impura por suas críticas pungentes. Ela rapidamente aplicou sua energia em preparar o pão com sua amiga, encobrindo o incômodo de sua consciência.

—Meninas, porque não estão no tear?—Ziva entrou com toda sua pose. Seu pano de cobrir a cabeça estava em volta de alguns galhos cortados e gravetos de baixo de seu braço. Ela chutou a porta para fechá-la.—Vocês duas já deveriam estar trabalhando duro naquele tecido. Vão! Eu cuidarei das coisas aqui. Esperem, porque tanta massa?—Ziva se livrou de seu fardo de madeira e inclinou-se por cima da gamela, examinando a massa.—Ashira, você está fazendo pão suficiente para alimentar sua família inteira. Nós só precisamos da metade disso!

A pulsação de Ashira acelerava e batia fortemente em suas têmporas. Ela tentou protestar—A gente só estava tentando ajudar…

—E o que você sabe sobre ajudar? Ai ai, vai achar outra coisa para fazer antes que cause mais problemas. Eu cuido do pão.—Ziva sentou-se e trabalhou a massa.

Ashira ficou em pé. Sua respiração veio pesadamente e por dentro ela estava agoniada. Elizabete apontou com o queixo para o quarto de trás, sabendo que insistir com sua tia só iria intensificar a situação.—O tear está pronto, Ashira, aqui atrás.—Ashira foi em direção ao quarto.

—Ah… e Ashira,—disse Ziva—Ouvi umas notícias enquanto estava fora. Seu pai saiu de novo, dessa vez para ver algum “messias”!

Os ombros de Ashira caíram e ela parou, petrificada. “Ah não! Essa também não!”

Ziva continuou—Não foi o que eu disse hoje de manhã? Uma vez que seu pai põe uma coisa na cabeça, você não vai ter ele de volta! Quem sabe o que ele vai fazer agora? Ninguém nem ouviu nada sobre esse novo messias ainda. Nenhum dos líderes nem mesmo tem mencionado ele uma única vez, mas seu pai precisava ser o primeiro a investigar! É tolice. Quer saber, tudo isso vai dar em nada e será um desperdício de tempo. E sem falar que ele está deixando sua família. Como é que vocês vão conseguir alimentar tantas bocas? Jerede não sabe trabalhar com pescaria…

Ashira bateu o pé e girou para encarar Ziva. Ela não conseguia conter a torrente de palavras.—Ziva!—ela disse quase gritando—Você não conhece meu pai! Você não entende ele! Você acha que sabe do que está falando? Meu pai não é assim! Ele é bom e ama agente. Você está interpretando sua paixão por Deus como irresponsabilidade, e você está errada! Abba ama Deus, e ele nos ama também. Você, por outro lado, você…—ela se calou, sem saber mais o que dizer.

Ashira levantou seu olhar, ofegando. Ela conseguia sentir quão vermelho seu rosto estava. Sua mãe estava na porta. Jedida tinha ouvido tudo, e seus olhos estavam arregalados com preocupação e espanto.

—Bem!—Ziva disse com um exagerado tom de ofensa,—Jedida, é essa a educação que você dá a sua filha? Ora, se fosse nos tempos de Moisés, esta criança seria levada para fora e apedrejada por ser tão desrespeitosa!

As mãos de Ashira caíram para o seu lado e ela ficou parada, desviando seus olhos do olhar de sua mãe. Jedida colocou seu cesto no chão e se aproximou de sua filha. Puxando-a pelo cotovelo e trazendo-a para um canto, elas cochicharam rapidamente. Partes da conversa chegaram até a Ziva enquanto ela cantarolava e trabalhava com a massa diante dela.

—Ashira você nunca deve falar assim! Por isso deve mudar sua atitude e tomar responsabilidade pelos seus próprios erros.

—Mãe, você ouviu. Eu não podia deixar ela continuar falando daquele jeito. Eu não quis…

—…Ashira… Agora!

Ashira arrastou os pés até chegar à Ziva. Ela não olhou para ela.—Desculpe—sua voz sombria e face tensa mostravam tudo menos arrependimento.

—Hummm…—Ziva chacoalhou sua cabeça. Com alguns movimentos rápidos ela arrumou os pães recém modelados ao redor do fogo para assar. Ela se endireitou completamente.—Bem, Jedida, já que você está aqui, eu suponho que é possível que a casa seja adequadamente manejada. Eu preciso ir agora. Tchau.

A mulher alta passou pela porta em um repentino ruge-ruge de mantos bordados. Ashira fez um pequeno som de lamento.

—Vem, Ashira—Elizabete disse, seu coração doendo e sua testa enrugada com preocupação.—Vamos voltar para o tear?

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