UM JOGO EMPOLGANTE
1915
Um Jogo Empolgante
No dia seguinte, Loristan se referiu apenas uma vez ao que havia ocorrido. ― Você cumpriu bem sua missão. Não foi precipitado nem nervoso ― ele disse ― O Príncipe ficou contente com sua calma.
Nada mais foi dito. Marco sabia que o título secreto do estrangeiro fora feito simplesmente como uma designação. Se fosse necessário mencioná-lo no futuro, ele seria referido como “o Príncipe”. Em vários países Europeus existiam muitos príncipes que não eram nobres nem altezas serenas – eram apenas príncipes assim como outros nobres eram duques ou barões. Nada de especial era revelado quando um homem era chamado de príncipe. Mas como nada fora dito sobre o incidente, era óbvio que Loristan e Lázaro estavam trabalhando muito. A porta da sala estava trancada, e os mapas e documentos, geralmente guardados na caixa de ferro, estavam em uso.
Marco foi para a Torre de Londres e gastou parte do dia revivendo as histórias que, séculos atrás, aconteceram dentro de suas grandes e antigas paredes de pedra. Desse modo, toda sua juventude tornou-se íntima com pessoas que, para a maioria dos meninos, pareciam apenas criaturas irreais que existiam apenas nos livros de história. Ele aprendera a conhecê-los como homens e mulheres porque estivera nos palácios onde eles nasceram, onde brincaram quando crianças, e onde morreram. Ele vira os calabouços onde foram aprisionados, os blocos onde deitavam suas cabeças, os parapeitos onde guerrearam para defender suas torres fortificadas, os tronos onde se sentaram, as coroas que usaram, e os cetros enfeitados com joias que seguraram. Ele ficara diante de seus retratos e fixara curiosamente os seus olhos nos “Trajes Cerimoniais”, costurados com dezenas de milhares de pequenas pérolas. Olhar para a face de um homem e sentir os seus olhos pintados seguirem você enquanto se afasta dele é compreender que história não é uma simples lição de um livro, mas um relato das histórias das vidas de homens e mulheres que viram estranhos e esplendidos dias, e algumas vezes sofreram estranhas e terríveis coisas.
Havia apenas alguns turistas. O seu guia,5 que usava o traje dos antigos guardas da Torre de Londres, era afável e, evidentemente, gostava muito de falar. Ele era grande e corpulento, tinha uma face larga e olhos pequenos e alegres. Era um tanto parecido com as figuras de Henrique VIII, o qual Marco lembrava ter visto. Ele ficou especialmente falador quando parou diante da placa que marca o local onde ficou o bloco no qual Joana Grey colocara sua jovem cabeça. Um dos turistas que sabia um pouco da história inglesa fizera algumas perguntas sobre as causas de sua execução.
― Se o sogro dela, o duque de Northumberland, tivesse deixado o jovem casal em paz, ela e seu marido, Lorde Guildford Dudley, poderiam continuar com suas cabeças no lugar. Ele estava resolvido a torná-la rainha, mas Maria Tudor também estava resolvida a se tornar a rainha. O duque não era hábil o suficiente para dirigir uma conspiração e persuadir o povo. Esses samavianos sobre os quais lemos nos jornais teriam feito melhor. E eles são semisselvagens.
― Eles tiveram uma grande batalha perto de Melzarr ontem. ― disse um turista próximo de Marco para a moça que o acompanhava ― Milhares deles morreram. Eu vi em letras grandes nas placas enquanto vinha no ônibus. Eles estão somente matando uns aos outros, é isto que estão fazendo.
O guia falador que estava com seu famoso traje o ouviu. ― Eles nem podem enterrar seus mortos rápido o suficiente. ― ele disse ― Terá algum tipo de praga espalhando e devastando os países mais próximos deles. Isso vai acabar expandindo por toda a Europa como na Idade Média. O que os países civilizados devem fazer é forçá-los a escolher um rei decente e a começarem a se comportar.
“Vou contar isto a meu pai também”, Marco pensou, “Isto mostra que todo mundo está pensando e falando de Samávia, e que até mesmo as pessoas comuns sabem que ela precisa de um rei verdadeiro. Esta deve ser A HORA!”. Com isso ele queria dizer que esta devia ser a hora pela qual o Partido Secreto esperara e trabalhara tanto – a hora de tomar Ação.
Mas o seu pai não estava quando retornou para Philibert Place, e Lázaro parecia mais silencioso do que nunca enquanto estava de pé atrás de sua cadeira e ao servir a refeição insignificante para Marco. Por mais simples que fosse a comida, era sempre servida com o mesmo cuidado e a mesma cerimônia de um banquete. “Um homem pode comer pão velho e beber água como se fosse um cavalheiro” seu pai lhe dissera há muito tempo. “E é fácil adquirir maus hábitos. Mesmo que esteja com tanta fome que se sinta voraz, um homem que tem sido bem educado não irá aparentar assim. Um cão pode, um homem não. Assim como um cão pode uivar quando está zangado ou com dor e um homem não deve.”
Esta era apenas uma pequena parte do treinamento que calmamente formara o menino, mesmo quando criança, autocontrolado e cortês, e o ensinara a tranquilidade e a graça de seu jovem comportamento, o hábito de se manter reto e elevado, e lhe dera uma clara aparência distinta a qual, mesmo sem presunção, o diferenciava dos outros meninos de maneiras negligentes e desajeitadas.
― Tem algum jornal aqui que fale da batalha, Lázaro? ― ele perguntou, depois que deixou a mesa.
― Sim, senhor. ― foi a resposta ― Seu pai falou que você pode lê-lo. É uma história terrível. ― ele adicionou, enquanto lhe dava o jornal.
Era uma história terrível. Enquanto lia, Marco sentiu que quase não conseguia suportar o que lia. Era como se Samávia nadasse em sangue, e como se os outros países devessem ficar espantados diante de tantas crueldades furiosas.
― Lázaro ― ele disse, levantando-se de um salto, seus olhos em chamas ― alguma coisa precisa parar isso! Deve existir alguém forte o suficiente. A hora chegou. A hora chegou. ― e andou de um lado para o outro porque estava muito agitado para ficar parado.
Como Lázaro o observava! Que sentimento forte e incandescente estava na sua face controlada! ― Sim, senhor. Certamente a hora chegou. ― mas foi tudo o que disse, então virou-se e saiu da velha sala imediatamente. Foi como se sentisse que era a escolha mais sábia a fazer, antes que perdesse o controle e dissesse mais.
Marco foi para o ponto de encontro do Pelotão, ao qual O Rato dera no passado o nome de Quartel. O Rato estava sentado entre os seus seguidores e estivera lendo o jornal da manhã para eles, o qual continha o relato da batalha de Melzarr. O Pelotão tornara-se o Partido Secreto, e cada membro vibrava com o espírito de conspiração e aventura. Todos eles cochichavam ao conversarem.
― Agora isto não é o Quartel ― O Rato disse ― É uma caverna subterrânea. Milhares de espadas e armas estão enterradas abaixo do chão, e empilhadas até o teto. Sobrou apenas um pequeno espaço para sentarmos e planejarmos. Nós entramos rastejando por um buraco e ele está escondido por arbustos.
Para o resto dos meninos isso era apenas um jogo empolgante, mas Marco sabia que para O Rato era mais do que isso. Ainda que O Rato não soubesse nada do que ele sabia, ele viu que toda a história parecia-lhe verdadeira. As lutas da Samávia, sobre as quais ele ouvira e lera nos jornais, apoderaram-se dele. Sua paixão por ser soldado e pelas artes de guerra e seu cérebro curiosamente maduro o levaram a seguir cada detalhe a que pudesse se prender. Ele prestara atenção a tudo o que ouvira com notáveis resultados. Ele recordava coisas que as pessoas mais velhas geralmente esquecem após mencioná-las. Não esquecera nada. Ele desenhara nas pedras do pavimento um mapa de Samávia, e Marco viu que estava correto, e também fizera um esboço básico de Melzarr e a batalha que tivera resultados desastrosos.
― Os Maranovitch tinham a posse de Melzarr. ― ele explicou com vivacidade febril ― E os Iarovitch os atacaram daqui. ― apontando com seu dedo ― Isto foi um erro. Eu teria atacado de um lugar do qual eles não estivessem esperando. Eles esperavam ataque na suas fortificações, e estavam prontos para defendê-las. Eu creio que o inimigo poderia os surpreender à noite e os atacar aqui. ― apontando de novo. Marco pensou que ele estava certo. O Rato planejara tudo, e estudara Melzarr como se estudasse um quebra-cabeça ou um problema de aritmética. Ele era muito inteligente e, como sua face demonstrava, muito perspicaz.
― Eu creio que você seria um bom general se fosse adulto. ― disse Marco. ― Gostaria de mostrar seus mapas para o meu pai e perguntar-lhe se não acha que sua estratégia seria boa.
― Ele sabe muito sobre Samávia? ― perguntou O Rato.
― Ele tem que ler os jornais porque escreve coisas. ― Marco respondeu. ― E todo mundo está pensando sobre a batalha. Ninguém pode evitar.
O Rato tirou um papel sujo e dobrado do bolso e deu uma olhada com ar de reflexão. ― Vou fazer um limpo ― ele disse ― Gostaria que um homem adulto desse uma olhada para ver se está certo.
― Fala, Rato, o que ‘cê e Marco vão ter qui fazê’. Vamu ouvi’ o que ‘cê inventô’. ― sugeriu Cad. Ele se aproximou, e assim fez o resto do círculo, abraçando os joelhos com os braços.
― Isto é o que devemos fazer ― começou O Rato, no cochicho baixo do Partido Secreto. ― A HORA CHEGOU. Para todos os Membros Secretos em Samávia e para os amigos do Partido Secreto em todos os países, o sinal deve ser levado. Deve ser levado por alguém que não seria suspeito. Quem suspeitaria de dois meninos, sendo um deles um aleijado? A melhor coisa para nós é que eu sou um aleijado. Quem suspeitaria de um aleijado? As pessoas quase sempre dariam dinheiro para um aleijado. Eu não serei mendigo por mim mesmo, mas serei um por Samávia e pelo Príncipe Perdido. Marco fingirá que é meu irmão e que cuida de mim. Escute ― disse para Marco com uma súbita mudança de voz ― você sabe cantar? Não importa como você faz.
― Sim, eu sei cantar ― Marco respondeu.
― Então Marco vai fingir que canta para que as pessoas deem dinheiro. Eu vou arrumar um par de muletas em algum lugar, parte do tempo vou andar de muletas, e parte na minha plataforma. Nós vamos viver como mendigos e iremos aonde quisermos. Eu posso rapidamente passar por um homem e dar o sinal sem ninguém perceber. Às vezes Marco pode dar o sinal quando as pessoas estiverem pondo dinheiro no seu chapéu. Podemos passar de um país a outro e incitar todos os que são do Partido Secreto. Vamos ir trabalhando até chegarmos em Samávia, e seremos apenas dois meninos – um sendo aleijado – e ninguém vai pensar que poderíamos fazer qualquer coisa. Nós vamos mendigar nas grandes cidades e na rodovia.
― Onde ‘cês vão arrumar pila pra viajá’? ― perguntou Cad.
― O Partido Secreto vai nos dar, e não vamos precisar de muito. Nossas esmolas serão o suficiente para isso. Nós vamos dormir abaixo das estrelas, ou debaixo de pontes ou de arcadas, ou nas esquinas escuras das ruas. Eu mesmo fiz isso muitas vezes quando meu pai me expulsava de casa. Se faz frio, é muito ruim, mas se o tempo está bom, é melhor do que dormir onde estou acostumado. ― Camarada ― ele disse para Marco ― você está pronto?
Ele disse “Camarada”, como Loristan, e de alguma maneira Marco não ficou ressentido, porque ele estava pronto para trabalhar para Samávia. Era apenas um jogo, mas tornara-os camaradas – e será que era apenas um jogo, afinal de contas? Sua voz excitada e as linhas estranhas de sua face o tornavam singularmente diferente.
― Sim, Camarada, estou pronto. ― Marco respondeu.
― Nós deveremos estar em Samávia quando o combate pelo Príncipe Perdido começar ― O Rato continuou sua história com fervor ― Nós poderemos ver uma batalha. Podemos fazer alguma coisa para ajudar. Podemos levar mensagens sob uma chuva de balas… uma chuva de balas! ― O pensamento o alegrou tanto que esqueceu seu cochicho e sua voz ressoava ferozmente. ― Meninos já estiveram em batalhas antes. Podemos achar o Rei Perdido… não, o Rei Achado, e pedir a ele para sermos seus servos. Ele poderia mandar-nos onde não poderia mandar pessoas maiores. Eu poderia dizer a ele: “Sua Majestade, eu sou chamado de ‘O Rato’, porque posso rastejar por buracos e em esquinas e mover-me rapidamente. Ordene-me ir para qualquer perigo e eu obedecerei você. Deixe-me morrer como um soldado se não posso viver como um.”
De repente ele levantou seu casaco em farrapos e cobriu os olhos. Ele se agitara tremendamente com a cena da chuva de balas. E sentiu como se visse o Rei, que finalmente fora achado. No instante seguinte ele descobriu sua face.
― Isto é o que devemos fazer ― ele disse ― exatamente isto, se você quer saber. E muito mais. Não há fim para isso!
Os pensamentos de Marco estavam num rodopio. Isso devia ser apenas um jogo. Ele ficou completamente incendiado por dentro. Se o Partido Secreto quisesse mandar mensageiros que ninguém pensaria ser suspeitos, quem pareceria mais inofensivo do que dois moleques perambulando levando a vida o melhor que podem, não parecendo pertencer a ninguém? E sendo um aleijado. Era verdade – sim, era verdade, como O Rato disse, que ser aleijado o fazia parecer mais inofensivo do que qualquer outro. Marco colocou sua testa entre suas mãos e pressionou suas têmporas.
― Qual é o problema? ― exclamou O Rato ― No que você está pensando?
― Estou pensando que general você faria. Estou pensando que tudo poderia ser real, cada palavra. Poderia não ser um jogo afinal de contas. ― disse Marco.
― Não, poderia não ser ― O Rato respondeu ― se eu soubesse onde o Partido Secreto está, gostaria de ir lá e falar a eles sobre isso. O que é isso?! ― ele disse, de repente virando sua cabeça na direção da rua ― O que eles estão gritando?
Alguns jornaleiros com uma voz particularmente aguda gritavam alguma coisa o mais alto que seus pulmões permitiam. Tensos e agitados, nenhum membro do círculo se mexeu nem falou por alguns segundos. O Rato ouvia, Marco ouvia, todo o Pelotão ouvia, aguçando os ouvidos.
― Notícias surpreendentes de Samávia, ― os jornaleiros guinchavam ― História maravilhosa! Descendente do Príncipe Perdido achado! Descendente do Príncipe Perdido achado!
― Alguém tem um centavo? ― O Rato falou rapidamente, começando a se arrastar na direção da passagem arqueada.
― Eu tenho! ― respondeu Marco, seguindo-o.
― Venha! ― O Rato gritou. ― Vamos comprar um jornal! ― E girou pela passagem com o seu mais rápido movimento de rato, enquanto o Pelotão o seguia, gritando e atropelando uns aos outros.
5O trabalho dos guias da Torre de Londres no princípio era de vigiar os prisioneiros na Torre e proteger as joias da coroa Britânica, mas em na prática eles serviam mais como guias para turistas que queriam conhecer a Torre de Londres. Estes guias são uma atração turística até hoje e vestem um traje exclusivo. Back