O RATO – E SAMÁVIA
1915
O Rato – e Samávia
O que O Rato pensou quando Loristan começou a falar com ele, Marco ficou imaginando. De repente ele estava em um mundo desconhecido e foi Loristan que fez isso ser assim porque sua pobreza não tinha poder para tocá-lo. Ele olhou para o menino com olhos calmos e claros, carinhosamente perguntando-lhe perguntas práticas, mas era óbvio que ele entendia muitas coisas sem perguntar nada. Marco pensou que ele talvez vira, em algum tempo, outros homens morrer na sua vida em lugares estranhos. Ele parecia saber quão terrível era a noite pela qual O Rato passara. Ele o fez sentar-se e ordenou para Lázaro trazer-lhe um pouco de café quente e comida simples.
― Não comi nada desde ontem, ― O Rato disse, ainda com seu olhar fixo nele. ― Como soube que não comi?
― Você não teve tempo ― Loristan respondeu. Depois disso Loristan o fez deitar-se no sofá.
― Olhe para minha roupa ― O Rato disse.
― Deite e durma. ― Loristan respondeu, colocando suas mãos nos seus ombros e carinhosamente o empurrando para o sofá ― Você irá dormir por um bom tempo. Você deve me dizer como encontrar o lugar onde seu pai morreu, e eu cuidarei que as autoridades apropriadas sejam notificadas.
― Por que você está fazendo isso? ― perguntou O Rato, e então adicionou: ― senhor.
― Porque eu sou um homem e você é um menino. E porque isso é uma coisa terrível ― Loristan respondeu.
E partiu sem dizer mais, e O Rato ficou deitado no sofá fitando a parede e pensando sobre isso até adormecer. Mas, antes de isso acontecer, Marco o deixara sozinho silenciosamente. Então, como Loristan dissera que seria, ele dormiu profundamente e muito tempo; de fato, ele dormiu por toda a noite.
Quando acordou na manhã seguinte, Lázaro estava em pé ao lado do sofá olhando para ele. ― Você vai querer se limpar. ― ele disse ― Isso precisa ser feito.
― Me limpar! ― disse O Rato, com sua risada guinchante ― Eu não podia me manter limpo quando tinha um lugar para viver, e agora onde vou me lavar? ― Ele sentou-se e olhou em volta. ― Dê minhas muletas ― ele disse ― Preciso ir. Eles me deixaram dormir aqui a noite toda. Não me mandaram para a rua. Não sei por que não. O pai do Marco… ele é um tipo bom. Ele parece um grã-fino.
― O Mestre ― disse Lázaro, de maneira rígida ― o Mestre é um grande cavalheiro. Ele não mandaria nenhuma criatura cansada de volta à rua. Ele e seu filho são pobres, mas são daqueles que dão. Ele deseja vê-lo e falar com você de novo. Você terá pão e café com ele e com o jovem Mestre. Mas sou eu que digo que você não pode sentar-se à mesa com eles até que esteja limpo. Venha comigo. ― e entregou-lhe suas muletas. Sua maneira era autoritária, mas era a maneira de um soldado; seus movimentos um tanto firmes e mecânicos eram, também, de soldado, e O Rato gostava deles porque faziam-no sentir como se estivesse em um quartel. Ele não sabia o que ia acontecer, mas levantou e segui-o sobre suas muletas.
Lázaro levou-o a um banheiro embaixo da escada onde uma bacia de banho gasta feita de estanho estava já cheia de água quente, que o próprio velho soldado trouxera em baldes. Lá havia sabão e toalhas ásperas e limpas, numa cadeira de madeira, e também havia uma muda de roupa bem usada, mas limpa.
― Coloque-as quando tiver se banhado ― Lázaro ordenou, apontando-as ― Elas pertencem ao jovem Mestre e serão grandes para você, mas serão melhores que as suas ― e então saiu do banheiro e fechou a porta.
Era uma nova experiência para O Rato. Até onde sabia, lavara sua face e suas mãos – quando lavava – em uma torneira de ferro na parede da rua de trás ou em alguma viela de bairro pobre. Ele e seu pai tinham há muito tempo caído em um mundo onde se lavar não fazia parte do dia-a-dia. Eles viveram entre sujeira e infâmia e quando seu pai estivera triste e embriagado, algumas vezes chorava e falava dos dias passados quando ele barbeava-se toda manhã e colocava uma camisa limpa.
Para estar até mesmo na mais velha das bacias de banho de estanho cheia de água limpa e quente e se lavar e molhar com um bom pedaço de flanela e bastante sabão era uma coisa maravilhosa. O Rato respondeu à novidade com um curioso sentimento de frescor e conforto.
― Suponho que os grã-finos fazem isso todo dia ― ele murmurou ― Eu faria se fosse um. Soldados têm que se manter tão limpos que brilhem.
Quando, depois de aproveitar ao máximo o sabão e a água, saiu de dentro do banheiro debaixo da escada, ele estava tão limpo quanto o próprio Marco; e embora suas roupas fossem feitas para um menino mais robusto, o reconhecimento da limpeza delas o encheu de prazer. Ele ficou imaginando se com algum esforço poderia manter-se limpo quando saísse para o mundo de novo e tivesse que dormir em qualquer buraco de onde a polícia não ordenasse que saísse.
Ele queria ver Marco de novo, mas queria mais ver o homem alto com os olhos escuros e gentis e aquela aparência nobre de um grã-fino apesar de suas roupas gastas e do lugar estranho onde ele vivia. Havia alguma coisa nele que fazia com que se ficasse olhando-o, e querendo saber em que ele estava pensando, e por que se sentia como se receberia ordens dele do mesmo modo que receberia de um general, se se fosse um soldado. Ele parecia, de algum modo, um soldado, mas como se fosse algo mais – como se as pessoas tivessem sempre recebido ordens dele, e sempre receberiam ordens vindas dele. E ainda ele tinha aquela voz calma e aqueles movimentos leves e tranquilos, e não era um soldado afinal, mas um homem pobre que escrevia para os jornais, os quais não lhe pagavam o suficiente para dar a ele e a seu filho uma vida confortável. Durante todo o tempo de sua reclusão com a bacia velha de banho e sabão e água, O Rato pensou nele, ansiando por vê-lo e ouvi-lo falar de novo. Ele não via motivo para Loristan tê-lo permitido dormir em seu sofá ou para dar-lhe café da manhã antes de mandá-lo de volta para encarar o mundo. Foi extremamente gentil da parte dele. O Rato sentiu que quando fosse mandado embora, depois do café, desejaria ficar andando pela vizinhança só para ter a chance de vê-lo passar de vez em quando.
Ele não sabia o que ia fazer. Os oficiais da cidade deviam agora já ter levado seu pai morto, e ele não o veria novamente. Ele não queria vê-lo novamente. Nunca se parecera com um pai. Eles nunca se importaram um com o outro. Ele sempre fora um rejeitado desprezível. Talvez, O Rato pensou, ele seria levado a andar pela rua para lá e para cá em sua plataforma e pedir esmolas, como seu pai tentara forçá-lo a fazer. Poderia ele vender jornais? O que poderia um garoto aleijado fazer a não ser pedir esmolas ou vender jornais?
Lázaro esperava por ele na passagem. O Rato deteve-se por um momento. ― Talvez eles não preferissem tomar café comigo. ― ele hesitou ― Eu não… eu não sou do tipo deles. Eu poderia engolir o café aqui fora e levar o pão comigo. E você poderia agradecê-lo por mim. Gostaria que ele soubesse que eu o agradeço.
Lázaro também tinha olhos firmes. O Rato percebeu que ele o olhava com um olhar penetrante como se tentasse ver que tipo de menino ele era. ― Você pode não ser do tipo deles, mas é do tipo que o Mestre vê o bem. Se ele não visse alguma coisa, não pediria para você sentar à sua mesa. Você deve vir comigo.
O Pelotão vira coisas boas no Rato, mas ninguém mais. Policiais o faziam ir embora sempre que o viam, as mulheres infelizes dos cortiços o tratavam do mesmo modo que tratavam o animal pelo qual era chamado; homens vadios ou homens de negócios viam nele um jovem estorvo para ser chutado e empurrado para fora do caminho.
O Rato deu um pequeno sorriso e ficou imaginando o que eles pretendiam, ao seguir Lázaro até a sala dos fundos. Ela era tão desbotada e sombria quanto parecera na noite anterior, mas pela luz do dia O Rato viu quão rigidamente limpa, quão varrida e livre de qualquer mancha de sujeira era, e como as pobres janelas foram limpas e polidas, e como tudo estava posto em ordem. O tecido áspero de linho na mesa limpo e sem manchas, e assim eram também as louças de barro de pouco valor, e as colheres brilhavam.
Loristan estava em pé perto da lareira e Marco estava perto dele. Eles estavam esperando pelo seu convidado vadio como se ele fosse um cavalheiro.
O Rato hesitou e esquivou-se à porta por um momento, e então subitamente lhe ocorreu ficar em pé tão reto quanto pudesse e fazer continência. Quando se viu na presença de Loristan, ele sentiu que devia fazer alguma coisa, mas não sabia o quê.
O reconhecimento vindo de Loristan pelo seu gesto e sua expressão ao ir em frente tiraram dos ombros do Rato um peso que ele mesmo nunca soubera que estava lá. De algum modo ele sentiu como se alguma coisa nova tivesse acontecido a ele, como se ele não fosse um simples “verme”, afinal de contas, como se não precisasse ficar na defensiva – até mesmo como se não precisasse temer muito na escuridão, e como uma coisa para a qual não havia lugar no mundo. O mero olhar direto e perspicaz dos olhos desse homem parecia abrir espaço em qualquer lugar para onde ele olhasse. E ainda assim o que ele disse foi muito simples.
― Isso é bom ― ele disse. ― Você descansou. Vamos comer alguma coisa, e então conversaremos juntos. Ele fez um pequeno gesto na direção da cadeira à direita de seu próprio lugar.
O Rato hesitou de novo. Como ele era formidável! Com aquele aceno de mão ele fazia você se sentir como se fosse um homem como ele, e como se o estivesse honrando. ― Eu não sou… ― O Rato interrompeu-se e virou a cabeça na direção de Marco. ― Ele sabe. ― ele terminou ― Nunca me sentei em uma mesa assim antes.
― Não há muita coisa nela ― Loristan fez o pequeno gesto na direção do assento ao lado direito e sorriu ― Vamos nos sentar.
O Rato obedeceu-o e a refeição começou. Havia apenas pão e café e um pouco de manteiga diante deles. Mas Lázaro ofereceu as xícaras e os pratos em uma pequena e brilhante badeja como se fosse uma travessa de ouro. Quando não estava servindo, ele ficava ereto atrás da cadeira de seu mestre, como se usasse um uniforme real de escarlate e ouro. Para o menino que roía um osso ou mastigava um pedaço de pão onde que os encontrasse, sem pensar em nada a não ser apaziguar sua fome feroz, assistir os dois com os quais se sentava comer sua simples comida era uma coisa nova. Ele não sabia nada das decências do dia-a-dia das pessoas civilizadas. O Rato gostou de olhar para eles, e se viu tentando segurar sua xícara como Loristan, e se sentando e se movendo como Marco fazia, pegando seu pão ou manteiga, quando era segurado ao seu lado por Lázaro, como se fosse uma coisa simples ser servido. Marco fora servido assim por toda sua vida, e isso não o fazia se sentir desajeitado. O Rato sabia que seu próprio pai já vivera assim. Pensar nisso o fez franzir a testa.
Mas em poucos minutos Loristan começou a falar sobre a cópia do mapa de Samávia. Então O Rato esqueceu de todo o resto e não ficou mais embaraçado. Ele não sabia que Loristan o estava levando a explicar suas teorias sobre o país, sobre as pessoas e sobre a guerra. Ele se viu contando tudo que ouvira, ou secretamente ouvira, ou PENSARA quando ficava deitado acordado no seu sótão. Ele estudara muitas coisas de um modo nada parecido com o de um garoto. Sua mente estranhamente concentrada e super madura estivera cheia de esquemas militares os quais Loristan ouviu com curiosidade e também maravilhado. Ele se tornara extraordinariamente inteligente em um sentido porque fixara todas as suas capacidades mentais em uma coisa. Parecia muito improvável que um moleque sem instrução conhecesse tanto e raciocinasse tão claramente. Era no mínimo extraordinariamente interessante. Não houvera nenhuma briga, nenhum ataque, nenhuma batalha que ele não liderara e lutara em sua própria imaginação, e ele fizera grande número de esboços de planos táticos de tudo que fora ou deveria ser feito. Lázaro ouviu tão atenciosamente quanto seu mestre, e uma vez Marco viu-o trocar um olhar surpreso e rápido com Loristan. Foi em um momento quando O Rato estava traçando com seu dedo no pano um ataque que DEVIA ter sido feito mas não fora. E Marco soube imediatamente que o rápido trocar de olhares significava: “Ele está certo! Se fosse feito, haveria vitória ao invés de desastre!”
Foi uma refeição excelente, ainda que tivesse apenas pão e café. O Rato sabia que nunca seria capaz de esquecê-la.
Mais tarde, Loristan contou-lhe o que fizera na noite anterior. Ele falara com as autoridades da cidade e tudo fora feito conforme o governo de uma cidade providencia no caso de morte de uma pessoa pobre. Seu pai seria enterrado de maneira usual. ― Nós vamos segui-lo. ― disse Loristan no fim. ― Você e eu e Marco e Lázaro.
A boca do Rato abriu-se. ― Você… e Marco… e Lázaro! ― ele exclamou, pasmado. ― E eu! Por que deveria qualquer um de nós ir? Eu não quero ir. Ele não me seguiria se eu estivesse no lugar dele.
― Quando uma vida não se deu a nada, o fim dela é uma coisa muito solitária. ― ele disse finalmente. ― Se a vida esqueceu todo o respeito por si mesma, piedade é tudo o que sobra para alguém oferecer. Alguém ofereceria ALGUMA COISA para algo tão solitário. ― Ele disse a última e breve sentença depois de uma pausa.
― Vamos. ― disse Marco de repente; e pegou a mão do Rato.
O movimento do Rato foi repentino. Ele deslizou de suas muletas para uma cadeira, e sentou-se com seu olhar fixo no tapete gasto, não como se olhasse para ele, mas para alguma coisa muito longe. Depois de um tempo ele olhou para Loristan.
― Você sabe no que eu pensei, tudo de uma vez? Ele disse numa voz trêmula. ― Pensei naquele “Príncipe Perdido”. Ele só viveu uma vez. Talvez não tenha vivido muito tempo. Ninguém sabe. Mas faz quinhentos anos, e, só porque ele era do tipo que era, todos que se lembram dele pensam em alguma coisa boa. É engraçado, mas faz bem só ouvir seu nome. E se ele tem treinado reis para Samávia todos esses anos – eles podem ter sido pobres e ninguém deve saber sobre eles, mas eles têm sido REIS. Isso é o que ELE fez – mesmo tendo vivido poucos anos. Quando eu penso nele e então penso… no outro… tem uma tremenda diferença que… sim… desculpe-me. Pela primeira vez. Eu sou seu filho e não ligava para ele naquele tempo; mas vejo como ele era sozinho – eu quero ir.
Então foi quando o homem infeliz e abandonado foi carregado para o cemitério onde cargas sem nome da cidade eram dadas à terra, que um curioso cortejo fúnebre o seguiu. Lá havia dois homens altos e com aparência de soldados e dois meninos, um dos quais andava sobre muletas, e atrás deles estavam dez outros meninos que andavam de dois a dois. Esses dez eram um grupo misturado, vestido em farrapos; Mas tinham faces respeitosamente solenes, mantinham suas cabeças e ombros perfeitamente.
Era o Pelotão; mas eles deixaram seus “rifles” em casa.