UM JOVEM CIDADÃO SEM PÁTRIA

1915

Um Jovem Cidadão Sem Pátria

Ele já estivera em Londres mais de uma vez, mas nunca nessa pensão em Philibert Place. Quando era trazido para uma cidade ou vilarejo pela segunda ou terceira vez, ele sempre sabia que a casa seria numa outra parte da cidade e que não veria as pessoas que tinha visto antes. Por isso, ligações superficiais que algumas vezes se formavam entre ele e outras crianças tão pobres quanto ele poderiam ser facilmente quebradas. O seu pai nunca o tinha proibido de considerar certa familiaridade casual. Seu pai, aliás, falou para ele que tinha razões de não desejar que ficasse afastado de outros meninos. A única barreira que deveria existir entre eles seria a barreira do silêncio das viagens que faziam de um país para outro. Outros meninos que eram pobres como ele não faziam viagens constantes assim, e consequentemente não sentiriam algo estranho se nas suas conversas de menino não falasse nada sobre isso. Se ele estivesse na Rússia, deveria falar somente sobre os lugares na Rússia e pessoas e costumes russos. Se estivesse na França, Alemanha, Áustria ou Inglaterra, precisava fazer a mesma coisa. Ele não lembrava quando aprendera inglês, francês, alemão, italiano e russo. Parecia que tinha crescido dentro dessa mudança de línguas e todas pareciam familiares para ele, como línguas são familiares para crianças que convivem com elas ao ponto de uma língua não ser menos familiar que outra. Ele lembrava, entretanto, que o seu pai era firme sobre sua atenção com a pronúncia e o sotaque da língua de cada país que estivessem morando naquele momento.

“Você não deve se parecer com um estrangeiro em nenhum país,” o seu pai havia dito. “Ninguém deve desconfiar que você é um estrangeiro. Quando você estiver na Inglaterra, você não deve saber francês, alemão ou nenhuma língua a não ser inglês.”

Uma vez, quando ele tinha sete ou oito anos, um menino tinha perguntado qual era a profissão de seu pai. “O pai do menino era um carpinteiro, e ele perguntou se o meu pai também era.” Marco trouxe essa história para Loristan. “Eu falei que você não era um carpinteiro. Aí ele perguntou se você era um sapateiro e outro falou que você talvez fosse um pedreiro ou um alfaiate. Eu não sabia o que falar para eles.” Marco estava brincando numa rua em Londres e colocou a sua mão pequena e suja no braço do seu pai e a segurou fortemente. “Eu queria falar para eles, pai, que você não era como os pais deles, nenhum pouquinho. Sei que você não é, mesmo que a gente seja pobre. Você não é um pedreiro nem um sapateiro, mas um patriota! Você nem iria pensar em ser só um pedreiro, né, pai?!” Ele falou estas palavras com um ar de grandioso e com um leve ar de indignação, sua cabeça erguida com um olhar furioso.

Loristan colocou sua mão na boca do menino. “Shhh!” ele falou. “Será que é um insulto um homem pensar que ele pode ser um carpinteiro ou fazer um bom terno de roupa? Se eu pudesse fazer nossas roupas, nós vestiríamos roupas melhores. Se eu fosse um sapateiro, seus dedos dos pés não estariam espiando o mundo como estão agora.” Ele estava sorrindo, mas Marco viu sua cabeça erguida também e seus olhos brilhavam ao tocar os ombros de Marco. “Eu sei que você não falou que eu era um patriota,” ele concluiu. “O que foi que você disse para eles?”

“Eu lembrei que você está quase sempre escrevendo e desenhando mapas então eu falei que você era um escritor, mas que eu não sabia o que você escrevia e que você disse que não era um bom negócio. Uma vez eu ouvi você falar isso para o Lázaro. Foi uma boa resposta?”

“Sim. Você sempre pode falar isso se for pedido de você. Existem muitas pessoas pobres escrevendo milhares de coisas diferentes que trazem pouco dinheiro. Ser um escritor não seria estranho.” Esta foi a resposta de Loristan e daquele dia em diante, se por acaso alguém perguntasse de que seu pai trabalhava, era respondido simples e honestamente que ele escrevia para ganhar o pão de cada dia.

Quando chegava num lugar novo e diferente, Marco andava bastante. Ele era forte, não se cansava facilmente e se entretinha em andar pelas ruas desconhecidas, olhar para lojas, casas e pessoas. Ele não se limitava a avenidas grandes, gostava de percorrer ruas afastadas, praças esquisitas e aparentemente desertas e até vielas e passagens estreitas entre edifícios. Muitas vezes ele parava para observar trabalhadores e conversar com eles se fossem amigáveis. Dessa maneira, nos seus passeios ele ficava conhecendo pessoas e aprendia muitas coisas. Ele tinha um certo afeto por músicos errantes, e aprendeu a cantar muitas músicas em sua forte e musical voz de menino com um velho italiano, que desde sua juventude era cantor de ópera. Ele conhecia muito bem as músicas do povo de vários países.

As horas passavam lentamente nessa primeira manhã, e ele estava com vontade de ter alguma coisa para fazer ou alguém para conversar. Fazer nada é uma coisa depressiva em qualquer momento, mas talvez mais ainda para um menino grande e saudável de doze anos. Londres, vista pela Avenida Marylebone, parecia um lugar horrível. A rua era triste, miserável e cheia de pessoas com rostos enfadonhos. Não era a primeira vez que ele tinha visto as mesmas coisas e isso sempre o deixava com um desejo de ter alguma coisa para fazer.

De repente ele virou-se da grade e foi para dentro da casa para falar com Lázaro. Ele o achou dentro do seu pequeno quarto, no quarto andar no fundo da casa. ― Vou caminhar um pouco ― ele anunciou. ― Por favor, avise meu pai se ele perguntar onde estou. Ele está ocupado e não quero incomodar ele. ― Lázaro estava remendando uma jaqueta velha como sempre remendava as coisas. Às vezes até remendava sapatos. Quando Marco falou, ele ficou em pé imediatamente para respondê-lo. Lázaro era bem obstinado e particular em algumas maneiras de agir. Nada iria forçá-lo a manter-se sentado quando Loristan ou Marco estava perto dele. Marco pensava que era porque ele tinha sido treinado rigidamente como um soldado. Ele sabia que o seu pai tinha tido muita dificuldade em tentar ajudá-lo a deixar esse hábito de fazer continência quando dirigiam algumas palavras a ele.

“Talvez,” Marco tinha ouvido Loristan falar para ele de uma maneira quase rigorosa, certa vez quando Lázaro tinha esquecido e ficado em pé, fazendo continência para seu mestre enquanto ele passava por um portão arruinado em frente a uma pensão igualmente arruinada, “talvez você possa lembrar de se conter se eu falar que isso não é prudente – simplesmente NÃO É SEGURO! Você coloca todos nós em perigo!” Era evidente que isso ajudara o bom companheiro a controlar-se. Marco lembrou que ele ficou pálido na hora, bateu a mão em sua testa e falou uma torrente de palavras no dialeto de Samávia em arrependimento e terror. Mas, mesmo que ele nunca mais fizesse continência em público, ele não omitia nem uma outra forma de reverência ou cerimônia e o menino se acostumou a ser tratado como se fosse qualquer outra coisa a não ser o pobre menino que de fato ele era, do qual até o próprio casaco era remendado por um velho soldado, que estava em posição de sentido diante dele agora.

― Sim, senhor ― Lázaro respondeu. ― Para onde deseja ir?

Marco franziu suas sobrancelhas pretas, tentando lembrar algo distinto da última vez em que ele estivera em Londres. ― Tenho ido a tantos lugares e visto tantas coisas desde a última vez que estive aqui, que preciso reaprender as ruas e os edifícios que não lembro mais.

― Sim, senhor ― Lázaro falou. ― já fomos a MUITOS lugares. Eu também esqueço. A última vez que você esteve aqui só tinha oito anos.

― Acho que vou procurar o palácio real e de lá vou andando e aprendendo os nomes das ruas ― Marco disse.

― Sim, senhor ― Lázaro respondeu, e dessa vez ele fez sua continência militar. Marco levantou sua mão direita em reconhecimento, como se fosse um jovem comandante. A maioria dos meninos pareceriam desajeitados ou teatrais ao fazer esse gesto, mas ele fez continência com naturalidade e com facilidade porque estava acostumado com essa forma de agir desde a infância. Ele tinha visto comandantes retornando suas continências aos seus homens quando estes encontravam-se por acaso nas ruas. Também tinha visto príncipes passando por sentinelas no caminho para suas carruagens e personagens mais ilustres levantando suas mãos quietamente aos capacetes em reconhecimento quando o príncipe passava por meio de multidões dando aplausos. Ele já tinha visto muitas pessoas reais e muitos desfiles reais, mas sempre somente como um menino mal vestido em pé na beira da multidão de pessoas comuns. Um rapaz energético, mesmo pobre, não tem como gastar seus dias indo de um país para o outro sem, por mera chance no meio dos eventos diários, se tornar familiar com a vida pública de realezas e de cortes reais. Marco já tinha estado em vias continentais quando imperadores que, ao visitarem, passavam com soldados na frente e atrás com armaduras cintilando no sol e as multidões gritando suas boas-vindas cortesmente. Ele sabia onde estavam as sentinelas de plantão em frente a palácios de reis e príncipes em várias grandes capitais. Tinha visto certos rostos reais o suficiente para conhecê-los bem e ficar pronto para fazer sua continência quando certas carruagens quietas e desacompanhadas passavam por ele.

“É bom conhecê-los. É bom observar tudo e treinar a si mesmo a lembrar de rostos e circunstâncias” seu pai falou. “Se você fosse um jovem príncipe ou um jovem em treinamento para uma carreira diplomática, seria ensinado a notar e lembrar pessoas e coisas, assim como também seria ensinado a falar sua própria língua com elegância. Tal observação seria sua realização mais prática e seu maior poder. É tão prático para um homem quanto para outro, para um rapaz pobre de casaco com remendos como para alguém que tem um lugar nas cortes reais. Sendo que você não pode ser educado na maneira comum, você precisa aprender das suas viagens e do mundo. Você não pode perder nada… esquecer nada.”

O seu pai lhe ensinara tudo e ele tinha aprendido bastante. Loristan tinha a habilidade de fazer tudo interessante a ponto de fasciná-lo. Para Marco, parecia que ele conhecia tudo que havia no mundo. Eles não eram ricos o suficiente para comprarem muitos livros, mas Loristan conhecia os tesouros de todas as grandes cidades e os recursos das cidades menores. Juntos ele e seu filho andavam pelas infinitas galerias cheias das maravilhas do mundo e pinturas as quais intermináveis fileiras de olhos levantados tinham observado pelos séculos. Seu pai fazia as pinturas se parecerem com o trabalho cheio de fulgor e glória de homens ainda vivos, os quais os séculos não tornaram pó. Ele podia contar as histórias dos que viveram e labutaram ao triunfo, histórias do que sentiram, do que sofreram e do que eram. Por essa razão, os velhos artistas – italianos, alemães, franceses, holandeses, ingleses, espanhóis – se tornaram tão familiares para o menino quanto a maioria dos países em que tinham vivido. Para ele não eram meramente artistas do passado, mas homens de grande caráter, homens que para ele pareciam ter lutado com lindas espadas e segurado luzes esplêndidas bem altas.

Seu pai não podia acompanhá-lo com tanta frequência, mas ele sempre o levava pela primeira vez para as galerias, museus, bibliotecas e lugares históricos que eram ricos em tesouros de arte, beleza ou história. Tendo ido pela primeira vez com seu pai, Marco retornava várias vezes e cresceu íntimo com as maravilhas do mundo. Ele sabia que estava honrando o desejo de seu pai quando treinava a si mesmo a observar todas as coisas e de não se esquecer de nada.

Esses lugares de maravilha eram os seus professores, e sua educação estranha, embora completa, era a parte mais interessante da sua vida. Com tempo, ele ficou sabendo exatamente onde as grandes obras de arte de Rembrandt, Vandykes, Rubens, Raphaels, Tintoretto ou Frans Hals ficavam. Sabia qual obra prima estava em qual cidade, fosse Viena, Paris, Munique ou Roma. Ele conhecia as histórias das coroas cheias de joias, das armaduras antigas, das obras de arte antigas e das relíquias romanas desenterradas das fundações de velhas cidades alemãs. Qualquer menino poderia ver o que Marco via, mas meninos com vidas mais cheias ou não tão sozinhas eram menos prováveis de conseguir concentrar as suas mentes no que estivessem olhando e também menos prováveis de gravar fatos com uma determinação para conseguir recordá-los em qualquer momento da prateleira mental em que eles estavam guardados. Tendo nenhum amigo e nada para brincar, ele começou, ainda bem pequeno, a fazer das suas caminhadas pelas galerias de fotos e lugares de tesouros e relíquias antigas um tipo de jogo.

Sempre tinha aqueles “dias livres” maravilhosos quando ele podia subir alguma escada de mármore e entrar em um portal grande sem pagar taxa de entrada. Uma vez dentro do lugar, havia muitas pessoas simples e pessoas vestidas pobremente, mas não havia muitos meninos jovens como ele que não fossem acompanhados por um adulto. Quieto e simples como ele era, muitas pessoas olhavam para ele. O jogo que ele criou para si mesmo era bem simples e interessante. O jogo era ver quanto ele podia lembrar e descrever claramente para o seu pai quando eles se sentavam juntos à noite e conversavam sobre o que ele tinha visto. Essas noites eram as noites mais felizes. Ele nunca se sentia solitário nessas horas, e quando seu pai, com seus olhos pretos e refletivos, se sentava e o olhava diligentemente com certa curiosidade, o menino ficava totalmente confortável e feliz. Algumas vezes Marco trazia para seu pai desenhos rústicos de objetos sobre os quais ele queria fazer perguntas, e Loristan sempre lhe contava uma história completa e rica do que ele queria saber. Elas eram histórias contadas com tanto esplendor e cheias de cor que Marco nunca as esquecia.

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